Monday, September 22, 2014

rapadura


Ele não tinha chegado àquela cidade com intenção de ficar. Eram ais uma de tantas outras passagens que o trabalho lhe proporcionava. A vida é feita de passagens, ele sempre repetia. Foi por isso que, ao ver aquela moça experimentando um vestido de noiva através da vitrine, enquanto caminhava pelo centro da cidade, ele demorou alguns segundos antes de tirar-lhe da vida e continuar a diminuir a distância entre si mesmo e a casa da garota que vinha lhe fazendo companhia nos últimos dias.

Ela haveria de querer casar um dia também, pensou. Mas ele não era homem para casar. Não ali, forasteiro em mais uma cidade, dessa vez capital com jeitinho de interior. Tão logo tocou a campainha, a chuva que ameaçava cair resolveu cumprir o que já se esperava. E a garota, feita de açúcar, fez da negação ao seu convite para um banho de chuva a certeza que ele precisava para dispensá-la. Açúcar refinado se desfaz em água. Ele preferia rapadura: doce, mas alheia à moleza.

Cidade pequena, por si só, já é ponto de encontro. Os amigos com que dividia a hospedaria de dois anos o viram no sereno e chamaram para sentar-se à mesa daquela pizzaria quase vizinha à sua morada, para onde retornava contra as gotas que caíam do céu. Dois casais e ele candelabro. Tem vela que ilumina mais que lanterna. Se não pela intensidade, pela poesia que carrega. A moça que a ninguém pertencia – ou assim parecia – lhe cedeu o olhar. Se não era de ninguém, mal não haveria que dele fosse. Era sua primeira e última vez como candelabro mais bem sucedido que o outro que o segurava.

No entanto, aquela moça de olhar conquistador já se pertencia. Horas antes estava a experimentar o vestido do grande dia, aquele em que duas pessoas se unem numa só. Ele não sabia, porque a magia daquele primeiro encontro, que nem eles sabiam ainda que assim o era, ficou apenas na troca de olhares, na esperança inconsciente dela e no aparente desinteresse dele.

Ela deu fim ao que parecia certo, porque aquele incerto condizia mais com todas as dúvidas deixadas no interior da loja de noivas horas antes. Se o penteado e a maquiagem não combinavam com o véu, que não combinava com o vestido, que não combinava com o sapato, de certo que o terno do outro não seria seu número ideal. Trocar o certo pelo duvidoso: o risco. Se for pra ser...

Ele soube que ela o procurava. E, no mesmo dia em que ela chegava do retiro pessoalmente definido para aliviar as dores da recente separação, ele pegou o avião para virar aquele ano junto à família na sua cidade natal. Dos desencontros surgem os melhores encontros. Quando menos se espera, o caroço de laranja deixado no sereno se insurge do chão fazendo brotar flor.

Três anos depois ele estava novamente em frente àquela vitrine. A mesma moça experimentava um vestido, e dessa vez ele a reconhecia. Não só pelo jeito com que gesticulava ou por conta dos óculos que o faziam enxergar melhor, mas pelo sorriso dela. Percebeu-se sorrindo também no reflexo quase invisível no vidro. Os dois anos que passaria naquela cidade viraram três. E aqueles três soavam como eternidade.

A laranjeira no quintal da hospedaria foi o motivo para que investisse o dinheiro na poupança na compra da casa. Era a corroboração com as raízes que ele próprio criara para si sem qualquer intenção de assim o ser anos antes. Encontrara rapadura tão doce quanto açúcar, mas eivada de moleza. Enquanto a laranjeira deixava seus frutos mais doces a cada colheita, suas raízes, advindas daquele ter o que nem se sabia querer, fizeram duas flores desabrocharem. Não eram laranjas, mas se fizeram tão doces quanto. E ele nem pedira por isso. Mas se era pra ser...

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