Saturday, October 25, 2014

sem volta

Te vi chegar, partir, voltar
Foram tantas vezes que nem sei contar
Te vi querer, se arrepender e me deixar
Banda Lolla 

Eu lembro da primeira vez que te vi: segundo dia de aula, aluna nova, filha de militar. Os cabelos presos num rabo de cavalo, saia rodada, camiseta e havaianas nos pés. Até agora há pouco eu acreditava que o fato de a única cadeira vaga da sala estar ao meu lado era obra do destino que nos reservava um futuro juntos. Ainda que você tenha dito, tão logo sentou, que não queria criar laços para desamarrá-los seis meses depois. Eu não gosto de ser desafiado, mas agora acredito que deveria ter respeitado sua vontade naquele momento. Afinal, se era o destino, porque levou um mês até que eu conseguisse, mesmo contra a sua vontade, quebrar a regra imposta naquele nosso primeiro encontro? E não foi muito honesto de minha parte pedir, na surdina, que o professor escolhesse você como meu par naquele trabalho. Sabe o que eu lembro também? De como você sorriu quando eu te contei essa história a primeira vez. Estávamos no aeroporto. Era a primeira vez que você partia da minha vida. Haviam passados seis meses e você chorava, culpando-se por ter se deixado envolver. Eu arrisquei sofrer a consequência de ter tua mágoa, mas a insistência fora minha e tudo o que eu menos queria era ouvir aquela palavra saindo da sua boca. Seria desonesto de minha parte te deixar com culpa. Mas você sorriu. Aquele sorriso mais feliz. Você acreditava em destino também, lembra?

Foi a primeira vez que você partiu e também a com menor duração até você voltar. Mas, pensando bem, o fato de você ter me alcançado ainda no estacionamento do aeroporto não deve ter sido teu retorno mais exaustivo como eu pensava na época. Até porque, naquela época, eu não imaginei que fossem haver outras partidas. Mas houveram. E quando você se esforçava para permanecer, cedendo o seu lado, eu te mandava ir. Eu não precisava me preocupar com desonestidade, porque sabia que você voltaria. Com exceção de duas únicas vezes. Uma na primeira vez que eu usei da minha força para te fazer sentir inferior a mim. Mas você voltou: o retiro espiritual onde você esteve por um mês – ou casa de amiga, ou de alguém da família, afinal eu nunca consegui te encontrar – ajudou para que eu recebesse o seu perdão. Era isso: você só precisava de um tempo. Tiveram vezes que no dia seguinte você estava de volta. Depois me acostumei a esperar duas semanas e, em seguida, aquele um mês de retiro – ou o que quer que tenha sido – virou apenas mais um mês que você havia demorado para voltar. Mas o querer deu lugar ao arrependimento pela tentativa, até que você não tentasse mais. E hoje faz justamente três anos e dois meses da sua última partida. 

Desrespeitei as normas morais e criei um perfil falso para poder acessar o seu no Facebook, já que você me bloqueara três anos e dois meses antes. Eu não precisava mais ter dúvidas quanto ao seu retorno: você não voltaria. Sua última publicação eram as fotos da última viagem com quem sua página anunciava como seu marido. Sorte do outro que pôde ser pra ti o que eu não fui. Ou, melhor, não ser o que eu fui. Eu queria ser esse cara, é verdade. Queria ter sido eu a te dar a mão e pular as sete ondas no ano novo, queria ser tua companhia para andar com os pés descalços na areia. E para ouvir o silêncio do teu sorriso ao sentir a água morna daquele mar azul ao amanhecer. Eu queria ser o dono daqueles pés ao lado dos teus no início do vídeo em que vocês se balançam na rede enquanto dividem uma água de coco. Foi quando eu vi que teu sorriso é diferente com ele, sabe? E dói. Agora dói, na verdade. Porque eu achei que, mesmo segurando a mão de outro, ainda era eu o teu par. Mas ouvir tua voz naquela gravação me fez lembrar da última vez que eu a tinha ouvido, a mesma da sua última partida, dessa vez sem retorno. Já não era eu com quem você andaria na contramão. Eu, na realidade, não mereço sua companhia sequer no banco do passageiro. Fui eu quem te fez perder aquele sorriso. Ele não estava diferente, apenas tinha voltado a ser mais feliz.

Wednesday, October 22, 2014

jarro azul


Era sempre assim: por mínima que fosse a duração da viagem – e independentemente de quão diferente fossem os ares respirados – ele não via a hora de voltar para casa. Por vezes sonhava com sua cama, o verdadeiro berço de ouro que todos deveriam valorizar. Sentia saudade da rotina também, mas só um pouco. No seu íntimo uma necessidade quase inconfessável, extravasada pelas mãos trêmulas ao abrir a porta do apartamento e na pressa dos passos até a mesa da sala, onde repousava aquele jarro azul que ele tomava nos braços para dar fim à saudade que se apoderava dele sempre que estava distante.

Não era só um jarro, como alguns dos poucos que sabiam sobre aquela relação platônica costumeiramente o denominava. Era uma história. Do passado, claro. Sofrida, de certa forma. Triste, em algumas lembranças. Mas revigorante, pois não o deixava perder a esperança. E era isso que aquele jarro azul lhe proporcionava: esperança. De que um dia não fosse aquele jarro a usufruir de todo o seu cuidado. Tantos anos e nenhum arranhão. Um dia ainda seria ele mesmo o jarro azul de alguém. Enquanto isso não acontecia ele fazia, do seu, merecedor daquilo que, na realidade, era ele próprio quem merecia. Era sempre assim.

Era.

Já haviam alguns anos que ele não encontrava ela. A distância já não era medida apenas pelos quatro metros que separavam as portas dos seus quartos. Ele se mantivera no presente, ela retornara ao passado em busca do futuro. Ele estava preso à Janeiro. Ela brincava de ir e voltar nos meses, presa ao medo de experimentar ganhar coisas novas em um novo ano. Visitá-la era aventurar-se no desconhecido para encontrar o passado. Recebê-lo era encontrar o passado, mas encarar o presente como tantas vezes ele tentava convencê-la a fazer. Mas agora o rio era dela. E era branco, não mais azul como o mar do outro.

Naquelas duas semanas, talvez pela primeira vez, ele não sofreu de saudade daquele jarro. Manteve a lembrança na memória, compartilhou histórias onde era ele o tema central, sentiu saudade de quando se apaixonou por ele. Mas a falta dele não era motivo de sofrimento. Na despedida, ao invés de aconselharem-se a abdicarem, ambos, daquilo que os fazia mal, ele prometeu que voltaria o mais breve possível. Ela prometeu que aquele ano chegaria ao fim depois de tanto tempo.

Foi a primeira vez em quase vinte anos que ele não fez a visita à sala antes de ir para o quarto. Era sempre assim: abria a porta do apartamento com as mãos trêmulas e seguia apressado até a mesa da sala. Era. Naquele tardar da noite, seus movimentos acompanharam a duração do assobio que representava a melodia da versão estendida de Ney Matogrosso para uma música que falava de saudade. Abriu a porta calmamente, seguiu pelo corredor até o quarto e deitou na cama, fechando os olhos em seguida. Ao fim da melodia, deu-se conta de que não fora até a mesa da sala. Mas adormeceu antes que pudesse levantar novamente.

Acordou bem cedo e, antes de ir para o banho, sintonizou o aparelho de som na rádio de onde originaram-se diversas gravações em fitas k7 na época em que apenas quatro metros era a distância diária mais comum entre eles. Percebeu que o cardápio musical divergia muito do que eles ouviam anos antes, mas as melodias e composições continuavam de muito bom gosto. Deixou a porta do quarto aberta para dar trilha sonora àquele encontro na sala ao fim do corredor. Foi até a mesa, pegou o jarro azul e manteve-o rente ao corpo num último abraço antes de deixa-lo no cubículo onde os moradores colocavam aquilo que queriam se desfazer para que não tivesse apenas o lixo como destino.

Talvez seu lugar não fosse naquela mesa mesmo, mas essa ainda era uma decisão incerta. Abriu o armário que sustentava a televisão e ficou por um tempo sem piscar os olhos, apenas fitando aquele objeto que ocupava todo o espaço por detrás das portas. Era idêntico ao que acabara de se desfazer, mas de azul só tinha os espaços vãos que a tinta branca mal passada deixara anos antes. Gostava daquele jarro, mas, preso ao passado, preferiu comprar um igual a fazer daquela cor branca um brinde à mudança. Os anos trataram de encardi-lo, mas isso o tornava ainda mais belo. Era o jarro dele. Estava diferente. Mas estava melhor. Aquela réplica de um passado que não deu certo era certamente a ingenuidade de um coração a persistir no erro.

Decidiu que seu lugar seria sempre uma decisão incerta. Ele não precisava ficar apenas sobre a mesa. Por enquanto permaneceria ali, adornando o ambiente e fazendo-o lembrar que, mesmo depois de tanto tempo no escuro, ainda era um belo jarro. E a esperança que o outro lhe transmitia fora substituída pela paz que encarar a mudança lhe dava. E lembrou dela. Ia quebrar a promessa que fizera na despedida. Parcialmente, pelo menos. Cerca de três semanas depois, e após muitas histórias estranhas inventadas, ela finalmente soube que o motivo para ele querer seus documentos não era para tê-la como fiadora em outro aluguel. E dali pouco mais de quarenta e oito horas estavam sentados à beira da praia, no primeiro dia do novo ano que começaram juntos. Ele era o jarro dela. E ela era o jarro dele. Nem azuis, bem brancos. Apenas abriram as portas um pro outro, ainda que não soubessem disso conscientemente, finalmente enxergando enxergando que não precisavam de ninguém, além de si mesmos, para se sentirem seguros.

Monday, October 13, 2014

adolescente

dos escritos no passado: 2003.

Porque ela não me vê? Por trás destes óculos há um sujeito honesto. Estas espinhas dizem apenas que sou jovem. Algumas vezes elas praticamente explodem no meu rosto, mas isso é só uma fase. Meus óculos, algumas vezes sujos, demonstram um pouco do meu relaxamento quanto à beleza.

Não sou bonito, eu sei. Fossem apenas os óculos e as espinhas ainda estaria melhor. Pra completar ainda estou acima do peso, com uma barriguinha aparente sob a camisa. Mas isso não me impede de olhar e admirá-la cada vez mais. Passo despercebido sobre seus olhos, mas ainda tento dizer-lhe um oi que nunca tem resposta.

Todos os dias eu já acordo disposto a ir à aula apenas para vê-la. Sentada ali, no canto à esquerda, junto às suas amigas. Presto mais atenção nas atitudes dela do que nas do professor em frente à sala. Ela percebe todos os outros ao redor, com exceção deste insignificante colega de sala.

Um dia ela me viu. Estava na fila do lanche e ela pediu que eu comprasse seu lanche. Comprei e ela se despediu apenas dizendo to te devendo essa. Depois desse dia nunca mais nos falamos. Eu ainda a vejo na sala e continuo imperceptível ao seu olhar. Mas ela ainda continua me devendo aquela e talvez seja a hora de eu a cobrar.

Thursday, October 09, 2014

germinou



dos escritos no passado: 2009.

Lá estava você nove meses depois.
Talvez não tenha sido o primeiro a lhe ver, nem a te segurar, mas sentiu a emoção que só ele poderia sentir.
Talvez não tenha sido o primeiro, o segundo, o terceiro, mas o quarto, como eu, o que não significa que tenha sido menos importante.
Talvez não tenha sido o melhor, não tenha te carregado nos braços, não tenha te levado para correr no parque, mas sentia um êxtase de orgulho cada vez que via você sorrir.
Talvez não te tenha deixado sair, não tenha comprado aquela roupa ou aquele brinquedo que tanto queria, mas, tenha certeza, você é a pessoa que é hoje também pelas coisas que não teve.
Talvez ele tenha sido rude algumas vezes, mas pergunte hoje a si mesmo: quantas vezes foi rude com ele também?
E talvez ele não esteja mais ao seu lado, ou esteja de uma forma distante, mas lembre-se: você SEMPRE vai carregar um pedacinho dele com você.
Dê um abraço no seu pai. Faça uma oração. Visite-o onde quer que ele esteja. Aqui ou lá estará sempre olhando pra você.

Monday, October 06, 2014

a menina do maiô vermelho


Desde muito cedo eu gosto de água: ainda com um ano e pouco fui salvo pela minha irmã mais nova depois de me jogar dentro da piscina no quintal de casa; não tinha receio algum em me jogar de corpo e alma nos açudes da fazenda quando passava o fim de semana no campo; e pelos nove anos de idade entrei numa escolinha de natação pela primeira vez para aprender o modo correto de trabalhar o corpo na água. Foi lá que eu conheci uma garota, pouco mais nova, que nadava de um lado a outro da piscina vestida num maiô vermelho.

Uma de minhas melhores amigas na época – e até hoje – tratou de fazer amizade com ela depois que descobrimos que aquelas inúmeras voltas de um lado para outro eram nada mais que sua própria vontade de nadar. Ela não era aluna como nós, apenas uma usuária do mesmo clube onde tínhamos aula. E, apesar da piscina estar ali apenas para o nosso uso naquela uma hora, seu nado rente aos azulejos azuis não incomodava.

Criamos – eu, minha amiga, ela e outro amigo – um laço que foi se construindo gradativamente durante o retorno para nossas casas. Ela morava mais longe e eu era o último de quem ela se despedia antes de chegar em casa. Lembro bem dela: havaianas nos pés, cabelos loiros, olhos claros, de pele branca, vestindo apenas um short por cima do maiô vermelho.

E por mais incrível que pareça fazer daquela época tão distante no passado a responsável por isso, lembro dela como a primeira pessoa de quem senti saudade. Éramos duas crianças que, além dos encontros no clube três vezes na semana, tínhamos um relacionamento telefônico. Não recordo a frequência, mas minha memória faz nítida a lembrança dos passeios limitados pelas paredes do quarto enquanto ouvia sua voz ao telefone.

Aquela menina do maiô vermelho me fazia sorrir todos os dias. Sorriso, aos dez anos de idade, acredito eu, são livres de qualquer disfarce. E, ao deitar para dormir, tão logo fechava os olhos eu me via no portão de casa, hipnotizado enquanto ela caminhava até dobrar a esquina. Não lembro se sonhava com ela, mas, penso eu, era ela quem me fazia sonhar.

Um dia, por culpa de minhas inseguranças infantis, deixamos de nos falar. Olhando para trás, a gente sempre ri do quão desesperados ficamos com bobagens que não teriam tanta importância hoje. Mas os problemas de hoje são uns, os de ontem eram outros. E, mesmo sabendo que amanhã podemos olhar para trás rindo de algumas coisas que nos preocupavam hoje, não quer dizer que vamos deixar de nos preocupar com elas.

Cessaram os telefonemas. E, pouco a pouco, de raros os encontros passaram a não mais existir. Não tinha pele branca, olhos claros, cabelos loiros ou maiô vermelho em qualquer outro lugar que não apenas na minha lembrança, aos poucos sendo substituído pelos mais variados interesses que a passagem do tempo vai trazendo para todo mundo. De recordação, inconsciente, daquela menina só a cor vermelha que tornou-se minha preferida.

Passados pouco mais de dez anos aconteceu de nos reencontrarmos. Num primeiro momento acreditei ser coisa do destino, mas percebi que suas lembranças não condiziam com as minhas. Então acreditei que tornar-se amigo de sua irmã era coisa do destino unicamente para nós dois – que seguiríamos assim até o presente – e nada tinha a ver com reencontrar alguém tantos anos distante no passado. Era apenas coincidência de ainda moramos na mesma cidade pequena.

Nos reencontramos mais ou menos à mesma época em que, vez ou outra, eu fazia daquela crença em destino o bode expiatório pelos fracassos cujos único responsável era meu medo de fazer escolhas e tomar decisões. Hoje, muitos anos antes de completar sequer a década do hiato anterior, eu percebi que destino também podia ser o tal fruto colhido de uma árvore cuja semente fora plantada anos antes.

Retorno à crença de que conhecer sua irmã foi coisa do tal destino, sim. Mas não foi só para me presentear com uma nova amizade especial. Foi, também, para que eu encontrasse novamente aquela menina do maiô vermelho. Só que, hoje eu consegui perceber isso, nem para mim estava tudo suficientemente claro depois de tanto tempo sem vê-la.

Foram necessários diversos reencontros, alguns insuportavelmente repletos de tentativas – frustradas – de ultrapassar o pouco tempo de convivência em festas de amigos ou baladinhas na noite. Foi necessário que ela fizesse dela minhas palavras e me instigasse a agradecê-la devidamente. Foi necessário retornar ao passado e reviver nitidamente algumas lembranças que eu acreditava nem existirem mais em mim.

Meu agradecimento pelo prestígio transmutou-se num agradecimento pelos sorrisos, pelos telefonemas, pelo vermelho e pela saudade – eu ainda não conhecia o que era, mas concordo com aqueles que a definem como o amor que fica. Ela pode nunca saber, mas me fez ir tão fundo na memória que conseguiu fazer-me sorrir com aquele sorriso de dez anos, sem qualquer disfarce.

Mesmo que aquela menina do maiô vermelho seja lembrança existente apenas em mim, agradecer pela honra de ter tido sua admiração dias atrás é coisa pouca perto do quanto me sinto agraciado pelo simples fato de tê-la na lembrança. Havaianas nos pés, cabelos loiros, olhos claros, de pele branca, vestindo apenas um short por cima do maiô vermelho, hipnotizando meus olhos até dobrar a esquina. A cor vermelha. E a saudade.