Era sempre assim: por mínima que fosse a duração da viagem – e independentemente de quão diferente fossem os ares respirados – ele não via a hora de voltar para casa. Por vezes sonhava com sua cama, o verdadeiro berço de ouro que todos deveriam valorizar. Sentia saudade da rotina também, mas só um pouco. No seu íntimo uma necessidade quase inconfessável, extravasada pelas mãos trêmulas ao abrir a porta do apartamento e na pressa dos passos até a mesa da sala, onde repousava aquele jarro azul que ele tomava nos braços para dar fim à saudade que se apoderava dele sempre que estava distante.
Não era só um jarro, como alguns dos poucos que sabiam sobre aquela relação platônica costumeiramente o denominava. Era uma história. Do passado, claro. Sofrida, de certa forma. Triste, em algumas lembranças. Mas revigorante, pois não o deixava perder a esperança. E era isso que aquele jarro azul lhe proporcionava: esperança. De que um dia não fosse aquele jarro a usufruir de todo o seu cuidado. Tantos anos e nenhum arranhão. Um dia ainda seria ele mesmo o jarro azul de alguém. Enquanto isso não acontecia ele fazia, do seu, merecedor daquilo que, na realidade, era ele próprio quem merecia. Era sempre assim.
Era.
Já haviam alguns anos que ele não encontrava ela. A distância já não era medida apenas pelos quatro metros que separavam as portas dos seus quartos. Ele se mantivera no presente, ela retornara ao passado em busca do futuro. Ele estava preso à Janeiro. Ela brincava de ir e voltar nos meses, presa ao medo de experimentar ganhar coisas novas em um novo ano. Visitá-la era aventurar-se no desconhecido para encontrar o passado. Recebê-lo era encontrar o passado, mas encarar o presente como tantas vezes ele tentava convencê-la a fazer. Mas agora o rio era dela. E era branco, não mais azul como o mar do outro.
Naquelas duas semanas, talvez pela primeira vez, ele não sofreu de saudade daquele jarro. Manteve a lembrança na memória, compartilhou histórias onde era ele o tema central, sentiu saudade de quando se apaixonou por ele. Mas a falta dele não era motivo de sofrimento. Na despedida, ao invés de aconselharem-se a abdicarem, ambos, daquilo que os fazia mal, ele prometeu que voltaria o mais breve possível. Ela prometeu que aquele ano chegaria ao fim depois de tanto tempo.
Foi a primeira vez em quase vinte anos que ele não fez a visita à sala antes de ir para o quarto. Era sempre assim: abria a porta do apartamento com as mãos trêmulas e seguia apressado até a mesa da sala. Era. Naquele tardar da noite, seus movimentos acompanharam a duração do assobio que representava a melodia da versão estendida de Ney Matogrosso para uma música que falava de saudade. Abriu a porta calmamente, seguiu pelo corredor até o quarto e deitou na cama, fechando os olhos em seguida. Ao fim da melodia, deu-se conta de que não fora até a mesa da sala. Mas adormeceu antes que pudesse levantar novamente.
Acordou bem cedo e, antes de ir para o banho, sintonizou o aparelho de som na rádio de onde originaram-se diversas gravações em fitas k7 na época em que apenas quatro metros era a distância diária mais comum entre eles. Percebeu que o cardápio musical divergia muito do que eles ouviam anos antes, mas as melodias e composições continuavam de muito bom gosto. Deixou a porta do quarto aberta para dar trilha sonora àquele encontro na sala ao fim do corredor. Foi até a mesa, pegou o jarro azul e manteve-o rente ao corpo num último abraço antes de deixa-lo no cubículo onde os moradores colocavam aquilo que queriam se desfazer para que não tivesse apenas o lixo como destino.
Talvez seu lugar não fosse naquela mesa mesmo, mas essa ainda era uma decisão incerta. Abriu o armário que sustentava a televisão e ficou por um tempo sem piscar os olhos, apenas fitando aquele objeto que ocupava todo o espaço por detrás das portas. Era idêntico ao que acabara de se desfazer, mas de azul só tinha os espaços vãos que a tinta branca mal passada deixara anos antes. Gostava daquele jarro, mas, preso ao passado, preferiu comprar um igual a fazer daquela cor branca um brinde à mudança. Os anos trataram de encardi-lo, mas isso o tornava ainda mais belo. Era o jarro dele. Estava diferente. Mas estava melhor. Aquela réplica de um passado que não deu certo era certamente a ingenuidade de um coração a persistir no erro.
Decidiu que seu lugar seria sempre uma decisão incerta. Ele não precisava ficar apenas sobre a mesa. Por enquanto permaneceria ali, adornando o ambiente e fazendo-o lembrar que, mesmo depois de tanto tempo no escuro, ainda era um belo jarro. E a esperança que o outro lhe transmitia fora substituída pela paz que encarar a mudança lhe dava. E lembrou dela. Ia quebrar a promessa que fizera na despedida. Parcialmente, pelo menos. Cerca de três semanas depois, e após muitas histórias estranhas inventadas, ela finalmente soube que o motivo para ele querer seus documentos não era para tê-la como fiadora em outro aluguel. E dali pouco mais de quarenta e oito horas estavam sentados à beira da praia, no primeiro dia do novo ano que começaram juntos. Ele era o jarro dela. E ela era o jarro dele. Nem azuis, bem brancos. Apenas abriram as portas um pro outro, ainda que não soubessem disso conscientemente, finalmente enxergando enxergando que não precisavam de ninguém, além de si mesmos, para se sentirem seguros.
Não era só um jarro, como alguns dos poucos que sabiam sobre aquela relação platônica costumeiramente o denominava. Era uma história. Do passado, claro. Sofrida, de certa forma. Triste, em algumas lembranças. Mas revigorante, pois não o deixava perder a esperança. E era isso que aquele jarro azul lhe proporcionava: esperança. De que um dia não fosse aquele jarro a usufruir de todo o seu cuidado. Tantos anos e nenhum arranhão. Um dia ainda seria ele mesmo o jarro azul de alguém. Enquanto isso não acontecia ele fazia, do seu, merecedor daquilo que, na realidade, era ele próprio quem merecia. Era sempre assim.
Era.
Já haviam alguns anos que ele não encontrava ela. A distância já não era medida apenas pelos quatro metros que separavam as portas dos seus quartos. Ele se mantivera no presente, ela retornara ao passado em busca do futuro. Ele estava preso à Janeiro. Ela brincava de ir e voltar nos meses, presa ao medo de experimentar ganhar coisas novas em um novo ano. Visitá-la era aventurar-se no desconhecido para encontrar o passado. Recebê-lo era encontrar o passado, mas encarar o presente como tantas vezes ele tentava convencê-la a fazer. Mas agora o rio era dela. E era branco, não mais azul como o mar do outro.
Naquelas duas semanas, talvez pela primeira vez, ele não sofreu de saudade daquele jarro. Manteve a lembrança na memória, compartilhou histórias onde era ele o tema central, sentiu saudade de quando se apaixonou por ele. Mas a falta dele não era motivo de sofrimento. Na despedida, ao invés de aconselharem-se a abdicarem, ambos, daquilo que os fazia mal, ele prometeu que voltaria o mais breve possível. Ela prometeu que aquele ano chegaria ao fim depois de tanto tempo.
Foi a primeira vez em quase vinte anos que ele não fez a visita à sala antes de ir para o quarto. Era sempre assim: abria a porta do apartamento com as mãos trêmulas e seguia apressado até a mesa da sala. Era. Naquele tardar da noite, seus movimentos acompanharam a duração do assobio que representava a melodia da versão estendida de Ney Matogrosso para uma música que falava de saudade. Abriu a porta calmamente, seguiu pelo corredor até o quarto e deitou na cama, fechando os olhos em seguida. Ao fim da melodia, deu-se conta de que não fora até a mesa da sala. Mas adormeceu antes que pudesse levantar novamente.
Acordou bem cedo e, antes de ir para o banho, sintonizou o aparelho de som na rádio de onde originaram-se diversas gravações em fitas k7 na época em que apenas quatro metros era a distância diária mais comum entre eles. Percebeu que o cardápio musical divergia muito do que eles ouviam anos antes, mas as melodias e composições continuavam de muito bom gosto. Deixou a porta do quarto aberta para dar trilha sonora àquele encontro na sala ao fim do corredor. Foi até a mesa, pegou o jarro azul e manteve-o rente ao corpo num último abraço antes de deixa-lo no cubículo onde os moradores colocavam aquilo que queriam se desfazer para que não tivesse apenas o lixo como destino.
Talvez seu lugar não fosse naquela mesa mesmo, mas essa ainda era uma decisão incerta. Abriu o armário que sustentava a televisão e ficou por um tempo sem piscar os olhos, apenas fitando aquele objeto que ocupava todo o espaço por detrás das portas. Era idêntico ao que acabara de se desfazer, mas de azul só tinha os espaços vãos que a tinta branca mal passada deixara anos antes. Gostava daquele jarro, mas, preso ao passado, preferiu comprar um igual a fazer daquela cor branca um brinde à mudança. Os anos trataram de encardi-lo, mas isso o tornava ainda mais belo. Era o jarro dele. Estava diferente. Mas estava melhor. Aquela réplica de um passado que não deu certo era certamente a ingenuidade de um coração a persistir no erro.
Decidiu que seu lugar seria sempre uma decisão incerta. Ele não precisava ficar apenas sobre a mesa. Por enquanto permaneceria ali, adornando o ambiente e fazendo-o lembrar que, mesmo depois de tanto tempo no escuro, ainda era um belo jarro. E a esperança que o outro lhe transmitia fora substituída pela paz que encarar a mudança lhe dava. E lembrou dela. Ia quebrar a promessa que fizera na despedida. Parcialmente, pelo menos. Cerca de três semanas depois, e após muitas histórias estranhas inventadas, ela finalmente soube que o motivo para ele querer seus documentos não era para tê-la como fiadora em outro aluguel. E dali pouco mais de quarenta e oito horas estavam sentados à beira da praia, no primeiro dia do novo ano que começaram juntos. Ele era o jarro dela. E ela era o jarro dele. Nem azuis, bem brancos. Apenas abriram as portas um pro outro, ainda que não soubessem disso conscientemente, finalmente enxergando enxergando que não precisavam de ninguém, além de si mesmos, para se sentirem seguros.
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