Monday, October 06, 2014

a menina do maiô vermelho


Desde muito cedo eu gosto de água: ainda com um ano e pouco fui salvo pela minha irmã mais nova depois de me jogar dentro da piscina no quintal de casa; não tinha receio algum em me jogar de corpo e alma nos açudes da fazenda quando passava o fim de semana no campo; e pelos nove anos de idade entrei numa escolinha de natação pela primeira vez para aprender o modo correto de trabalhar o corpo na água. Foi lá que eu conheci uma garota, pouco mais nova, que nadava de um lado a outro da piscina vestida num maiô vermelho.

Uma de minhas melhores amigas na época – e até hoje – tratou de fazer amizade com ela depois que descobrimos que aquelas inúmeras voltas de um lado para outro eram nada mais que sua própria vontade de nadar. Ela não era aluna como nós, apenas uma usuária do mesmo clube onde tínhamos aula. E, apesar da piscina estar ali apenas para o nosso uso naquela uma hora, seu nado rente aos azulejos azuis não incomodava.

Criamos – eu, minha amiga, ela e outro amigo – um laço que foi se construindo gradativamente durante o retorno para nossas casas. Ela morava mais longe e eu era o último de quem ela se despedia antes de chegar em casa. Lembro bem dela: havaianas nos pés, cabelos loiros, olhos claros, de pele branca, vestindo apenas um short por cima do maiô vermelho.

E por mais incrível que pareça fazer daquela época tão distante no passado a responsável por isso, lembro dela como a primeira pessoa de quem senti saudade. Éramos duas crianças que, além dos encontros no clube três vezes na semana, tínhamos um relacionamento telefônico. Não recordo a frequência, mas minha memória faz nítida a lembrança dos passeios limitados pelas paredes do quarto enquanto ouvia sua voz ao telefone.

Aquela menina do maiô vermelho me fazia sorrir todos os dias. Sorriso, aos dez anos de idade, acredito eu, são livres de qualquer disfarce. E, ao deitar para dormir, tão logo fechava os olhos eu me via no portão de casa, hipnotizado enquanto ela caminhava até dobrar a esquina. Não lembro se sonhava com ela, mas, penso eu, era ela quem me fazia sonhar.

Um dia, por culpa de minhas inseguranças infantis, deixamos de nos falar. Olhando para trás, a gente sempre ri do quão desesperados ficamos com bobagens que não teriam tanta importância hoje. Mas os problemas de hoje são uns, os de ontem eram outros. E, mesmo sabendo que amanhã podemos olhar para trás rindo de algumas coisas que nos preocupavam hoje, não quer dizer que vamos deixar de nos preocupar com elas.

Cessaram os telefonemas. E, pouco a pouco, de raros os encontros passaram a não mais existir. Não tinha pele branca, olhos claros, cabelos loiros ou maiô vermelho em qualquer outro lugar que não apenas na minha lembrança, aos poucos sendo substituído pelos mais variados interesses que a passagem do tempo vai trazendo para todo mundo. De recordação, inconsciente, daquela menina só a cor vermelha que tornou-se minha preferida.

Passados pouco mais de dez anos aconteceu de nos reencontrarmos. Num primeiro momento acreditei ser coisa do destino, mas percebi que suas lembranças não condiziam com as minhas. Então acreditei que tornar-se amigo de sua irmã era coisa do destino unicamente para nós dois – que seguiríamos assim até o presente – e nada tinha a ver com reencontrar alguém tantos anos distante no passado. Era apenas coincidência de ainda moramos na mesma cidade pequena.

Nos reencontramos mais ou menos à mesma época em que, vez ou outra, eu fazia daquela crença em destino o bode expiatório pelos fracassos cujos único responsável era meu medo de fazer escolhas e tomar decisões. Hoje, muitos anos antes de completar sequer a década do hiato anterior, eu percebi que destino também podia ser o tal fruto colhido de uma árvore cuja semente fora plantada anos antes.

Retorno à crença de que conhecer sua irmã foi coisa do tal destino, sim. Mas não foi só para me presentear com uma nova amizade especial. Foi, também, para que eu encontrasse novamente aquela menina do maiô vermelho. Só que, hoje eu consegui perceber isso, nem para mim estava tudo suficientemente claro depois de tanto tempo sem vê-la.

Foram necessários diversos reencontros, alguns insuportavelmente repletos de tentativas – frustradas – de ultrapassar o pouco tempo de convivência em festas de amigos ou baladinhas na noite. Foi necessário que ela fizesse dela minhas palavras e me instigasse a agradecê-la devidamente. Foi necessário retornar ao passado e reviver nitidamente algumas lembranças que eu acreditava nem existirem mais em mim.

Meu agradecimento pelo prestígio transmutou-se num agradecimento pelos sorrisos, pelos telefonemas, pelo vermelho e pela saudade – eu ainda não conhecia o que era, mas concordo com aqueles que a definem como o amor que fica. Ela pode nunca saber, mas me fez ir tão fundo na memória que conseguiu fazer-me sorrir com aquele sorriso de dez anos, sem qualquer disfarce.

Mesmo que aquela menina do maiô vermelho seja lembrança existente apenas em mim, agradecer pela honra de ter tido sua admiração dias atrás é coisa pouca perto do quanto me sinto agraciado pelo simples fato de tê-la na lembrança. Havaianas nos pés, cabelos loiros, olhos claros, de pele branca, vestindo apenas um short por cima do maiô vermelho, hipnotizando meus olhos até dobrar a esquina. A cor vermelha. E a saudade.

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