Tuesday, November 30, 2010

Prólogo

Não se faz necessário contar minuciosamente como estava aquele dia. Não é importante para a história. Mas, tendo em vista os acontecimentos, é importante que se tenha uma idéia. Era sexta-feira, talvez uma como outra qualquer. O céu escureceu mais cedo, nuvens cinzentas, um sereno bastante sutil se comparado aos temporais que vinham acontecendo naquele mês de novembro. Algumas poucas pessoas com guarda-chuvas, outras tantas correndo, aflitas com qualquer gota mais forte que pudesse cair do céu.

O prédio era amarelo, com três andares e janelas gradeadas. Nunca tinha percebido, mas olhando agora parecia um hospital psiquiátrico que não queria parecer um hospital psiquiátrico com aquela placa de bem vindo na porta de entrada. Estava, ainda, dentro do carro. Mãos suando, corpo tremendo, boca seca. Medo. Era exatamente dezessete horas e dezessete minutos. Rezava a lenda que quando se olhasse no relógio e a hora fosse exatamente igual aos minutos, devia-se fazer um pedido. Seja o que Deus quiser.

Saiu do carro. Dirigiu-se à porta de entrada, suspirou profundamente e entrou. Àquela hora só a atendente e uma grávida. Laboratório quase vazio, a novela das cinco na televisão, atendente de cinqüenta e sete anos com aquela cara de poucos amigos, louca para que chegasse a bendita hora de fechar tudo e ir pra casa. Ficou estagnado, sem saber se perguntava ou se dava meia volta. Era uma situação da qual não adiantava fugir. Uma hora ia pegá-lo. Resolveu.

Vim buscar um exame. Qual o seu nome? Vinícius. Vinícius de quê? Lima Barreto, ta aqui o protocolo. Hm, só um minuto. A senhora impaciente para ir pra casa discou um número no telefone e ditou o número escrito no papel que ele tinha entregado. Desligou. Você pode aguardar um momento? O médico quer falar com você. Vinícius sentiu seu sangue gelar por todo o corpo. Por um momento pensou que iria desmaiar, mas conseguiu alcançar uma cadeira e sentar. O médico? pensou. Pro médico querer falar comigo é porque não são boas notícias.

Sua cabeça começou a dar reviravoltas. Começou a castigar-se mentalmente: porquê? Como pude fazer isso comigo? Onde estava com a cabeça? Meu Deus, por favor, me ajuda. Meu Deus, me perdoa por qualquer coisa. Meu Deus, qualquer castigo, menos esse. Como eu fui confiar? E eu? E eu? E eu, onde fico? Olha o que eu fiz comigo. Puta que pariu, que merda. O quê que eu vou fazer agora? Minha vida acabou. Minha vida acabou. Minha vida acab...

Pouco mais de cinco minutos depois, a atendente com cara de poucos amigos pediu que ele a acompanhasse. Seguiram por um corredor que, em outro momento, talvez não aparentasse aquela morbidez que exalava dele. Sentia frio na espinha, sentia medo, arrependimento. Eram tantos sentimentos misturados que não sabia como lidar com eles. Só sabia que sua vida estava prestes a mudar. E que jamais voltaria a ser o mesmo Vinícius. É aqui, pode entrar.

O consultório era bonito, limpo, organizado. O médico estava sentando por trás de sua mesa, com as mãos entrelaçadas em cima de um envelope que, ele tinha certeza, era o seu exame. Olá Vinícius, tudo bem com você? Não sei, está? Bom, precisamos conversar. Doutor, por favor, antes de qualquer coisa me diga: eu vou morrer? Não, rapaz, sente-se vamos conversar. Se essa conversa é sobre remédios e como atrasar a morte, eu prefiro simplesmente que o senhor me dê esse envelope e me deixe sair daqui. Silêncio.

Friday, November 26, 2010

Convivência

Foi na feira de livros infantis que a viu pela primeira vez. Dali a cinco anos estariam casados, com dois filhos e insuportavelmente dividindo a mesma casa. Se soubesse disso, não dos filhos, jamais teria parado para perguntar se ela já tinha lido O Pequeno Príncipe. Foi amor a primeira vista, garantiram. Mas a convivência é mesmo uma merda. E ela passou a se incomodar com as cuecas jogadas fora do cesto de roupa suja. E ele passou a se incomodar com a tampa do vaso sanitário sempre fechada. Era pasta de dente apertada em qualquer lugar e louça suja por um dia inteiro em cima da pia. Se soubesse de tudo isso, que chegariam a esse ponto, jamais teria contado a história d’O Pequeno Príncipe, quando ela respondera que nunca o tinha lido. Casaram na igreja mais bonita da cidade, e mais antiga também. Tinham amor para a vida inteira, como diziam. Tinham cativado um a outro e eram ambos responsáveis por isso. Mas a convivência, lá vem ela, os tornara tão desconhecidos quanto antes de trocarem as primeiras palavras naquela feira de livros infantis. Ela, sabedora de tantas coisas, resolveu deixar a vida levar para o caminho que desejasse. Ele, que sempre fazia tudo o que ela queria, concordou e seguiu assim. Mas as revistas de moda espalhadas por toda a sala, e a televisão sempre ligada no SporTV começaram a não só torná-los insuportáveis um com o outro, mas com todos os outros. Não recebiam mais visitas e sequer dormiam no mesmo quarto. Mandaram os filhos passarem férias com os avós. O pai dele e a mãe dela. Cada um com um para, pelo menos aí, não se desagradarem. Ele resolveu sair de casa, não ia criar caso por causa de um sofá velho presenteado no casamento. Ela, naquele dia, resolveu ir dormir na casa da melhor amiga. A casa ficou vazia. Sem desentendimentos, sem crianças, sem pais, sem amor. Ele decidiu que realmente ainda não estava preparado para iniciar um novo relacionamento. Olhou bem para aquela moça na feira de livros infantis, mas depois de vivenciar mentalmente como estariam dali a cinco anos, devolveu O Pequeno Príncipe para a prateleira.