"One day, baby we'll be old
Oh baby, we'll be old
And think of all the stories that we could have told..."
One Day - Asaf Avidan
Arnaldo enxugou as lágrimas e resolveu tentar entender mais uma vez. Parou ainda na metade da ladeira e desceu novamente. Não conseguia pensar em outro motivo que não fosse o reencontro com um de seus melhores amigos minutos antes: era esse o único acontecimento durante a transição de sorrisos e gestos amorosos para lábios cerrados e demonstração nula de carinho. Ele só não conseguia concluir qual a gravidade em estar de frente para um amigo atualizando os acontecimentos um do outro – o que incluía seu próprio relacionamento.
Dentre todas as humilhações com que já vinha lidando nos últimos meses aquela era a pior delas. Não só pelo fato de se sentir abandonado pela primeira vez na vida – e ainda implorar que assim não o fosse, mas, principalmente, por ter feito daquele dia a data registrada no atestado de óbito do seu amor próprio. Ainda assim, quando resgatando memórias num futuro não muito distante, seria também o motivo de descobrir que amor próprio é passível de renascença – ou despertar, caso tenha apenas adormecido:
- Eu precisava falar com você.
- Eu venho esperando por esse momento há muito tempo.
- Não fala nada. Deixa eu falar. Quando eu terminar você fala. Ou não, vai saber.
- Eu só queria entender o porquê.
- Vou te explicar o porquê. Ao mesmo tempo irei te dar todos os motivos para entender se você simplesmente, ao invés de falar ou não, virar as costas e for embora.
- Acho que o fato de você ter feito isso comigo é suficiente, não?
Arnaldo olhou para o chão. Lembrou do que acontecera semanas depois daquele reencontro. Já há alguns dias vinha rezando para que não se encontrassem novamente na presença do outro. Sempre tivera zelo pelo não rastreamento das conversas virtuais que nunca deixaram de ter. Um acreditava que elas não aconteciam. Outro não fazia ideia de que, minutos após a despedida, nem a lixeira do computador ficava com o arquivo daquela conversa por mais de cinco minutos. Ainda que atendidas quase sempre, a cidade pequena não permitiu que suas preces se fizessem fato para sempre. Sentindo o coração doer como nunca anteriormente sentido, Arnaldo passou rapidamente por ele, sendo um “oi” o único gesto recíproco aos braços abertos esbanjando saudade que lhe eram oferecidos.
- Eu sei, eu sei. Mas...
- Por acaso lhe falaram que eu não fui leal a você?
- Pelo egoísmo inerente ao motivo daquela minha atitude ridícula, eu preferia mil vezes que tivessem me dito isso.
- Oi?
- Eu preferia poder me dizer arrependido de ter desconfiado da sua lealdade do que de ter sido covarde ao ponto de enterrar meu amor próprio, porque era o amor do outro que eu acreditava merecer.
- Assim você me deixa confuso.
- Se eu tivesse no fundo de um poço e me dissessem que você não iria me dar a mão para ajudar, ainda assim eu ficaria esperando, porque eu sei que você ia.
- Eu ia mesmo.
- Eu sei. O que eu quero dizer é que preferia te pedir desculpas por não ter esperado que você aparecesse do que por, quando na minha vez de te puxar, te deixar esperando inutilmente, entende?
- Acho que sim. Ainda assim eu te daria a mão.
- Me disseram que você deu em cima de mim aquele dia.
- Eu? Como assim, gente?
- É. Você deu em cima de alguém que devia estar tão aéreo que nem percebeu.
- Mas eu não dei em cima de você.
- Eu sei.
- Então o que isso tem a ver?
- Isso tem a ver que, mesmo diante da certeza de minhas negativas, eu fui tão covarde que aceitei a condição de que, para permanecer nos planos futuros de alguém, eu deveria me desfazer de ti. Assim como o outro havia se desfeito de uma das cercas baixas que pulavas. Tem certeza que você ainda me daria a mão sabendo que ignorei completamente o sacrifício familiar que você um dia fez para continuarmos lado a lado ao te alocar no mesmo patamar que uma cerca baixa?
- Você não pediu para eu esperar até que dissesse tudo? – ele perguntou cerca de dez segundos depois que Arnaldo fitou novamente o chão, interrompendo a fala.
- Bom... Eu fiquei dias e dias ensaiando mentalmente como seria se eu te encontrasse. Aliás, como seria quando eu te encontrasse e estivesse acompanhado. Porque eu nem acreditei quando nos encontramos uma ou duas vezes e eu pude sentir teu abraço, ouvir tua voz sem me preocupar com nada além de te ter ali, mesmo que por poucos minutos. Mas eu tinha tanto medo de um eventual encontro estando com o outro que, naqueles minutos entre perceber que infelizmente aconteceria e eu te ignorar, eu percebi a inutilidade de um ensaio para aquela realidade. Sempre que eu penso sobre arrependimento, essa é a primeira lembrança que me vem na cabeça. Desde aquele dia eu sofria com a expectativa de como seria poder te pedir perdão. Eu só queria te pedir perdão – lágrimas escorriam dos olhos de Arnaldo.
- Ei, para de chorar.
- Deixa eu terminar. Você disse que ia esperar eu terminar. Eu escrevi uma carta para você – ele continuou após a afirmativa silenciosa do amigo. Acompanhava sua vida pelas redes sociais e queria saber mais de ti. Mas era tão covarde que gastei quase metade das linhas só com pedidos de segredo por aquele papel. E, não fosse só isso, ainda assinava em nome de outra pessoa. Primeira coisa: não precisava te pedir anonimato nenhum. Segunda coisa: enfrentar o medo deixou de ser uma opção? É, eu me escondi na sobra do outro de um jeito que abandonei minha própria sombra. Quando consegui o sol para mim eu percebi que faltava um guarda-sol ao meu lado. Faltava você do meu lado.
- Eu sou um guarda-sol?
- Você era o que eu precisava para finalmente poder me sentir renascido.
- Isso tudo é pelo seu próprio bem?
- Não. Não existe meu próprio bem e te falar nada disso. Só existe a explicação que você merece e os motivos para você se virar e ir embora.
- Tem mais?
- Talvez eu não estivesse aqui agora. Se eu não tivesse arriscado tanto talvez ainda me visse estagnado num beco sem saída. Mas consegui dar a volta e achei uma saída. E minha primeira parada não podia ser outra. Não dava para desbravar outros caminhos sem antes assumir todos os erros cometidos no percurso anterior. A gente pode até errar duas vezes, sabe? Mas aprender na primeira vez pode ser suficiente. E a dor de ter errado com você é impossível de descrever. Eu não quero errar assim de novo e, reconhecendo o erro, talvez eu seja uma pessoa melhor sim. Não para mim, mas para outros que, como você, só merecem amor.
- Sabe que... Desculpa, não esperei terminar.
- Fala. Pode falar.
- Sabe a história do poço? Então – ele continuou depois que Arnaldo balançou afirmativamente a cabeça – me dá aqui sua mão. Arnaldo, surpreso, levou a mão à dele – Se você tá no fundo do poço agora, tá aqui ó – ele fitou os olhos nas mãos unidas dos dois – estou te dando a mão.
- Você...
- Arnaldo... É claro que que gostaria muito de ter sabido disso tudo antes. Há anos que me pergunto o que aconteceu para você me tratar tão secamente aquele dia no cinema. Eu te afirmo até que teria entendido se você tivesse me falado. E talvez eu devesse ficar chateado, virar as costas e ir dar uma volta. Mas seriam dois trabalhos, sabe?
- Como assim?
- Eu ia, mas teria que voltar. Porque eu não iria jamais te deixar sozinho aqui – Arnaldo emudeceu-se, transformando quaisquer palavras que queriam sair em lágrimas – Eu acho que você aprendeu a lição. Eu também já errei. Mas tem uma coisa... Há anos que eu anseio por esse momento, não só para entender o que aconteceu, mas para te ver, te sentir, sabe? Isso é muito maior que qualquer outra coisa. O que é verdadeiro, pode passar o tempo que for, continua sendo verdadeiro. Amor, sabe?
- Eu... E...
- Não precisa dizer nada não. Agora não. Não perde tempo com palavras de desculpas ou perdão. Acho que temos muita coisa para contar um pro outro sobre os últimos anos. Vamos gastar saliva e lembranças com as novidades que dois amigos que não se veem há muito tempo tem para contar um ao outro.
- Você existe?
- A gente existe, cara. Isso não tem preço. Você é meu brotherzão, lembra?
- Ainda?
- Para sempre. Nunca deixou de ser.
- O que é verdadeiro, pode passar o tempo que for, continua sendo verdadeiro.
Dentre todas as humilhações com que já vinha lidando nos últimos meses aquela era a pior delas. Não só pelo fato de se sentir abandonado pela primeira vez na vida – e ainda implorar que assim não o fosse, mas, principalmente, por ter feito daquele dia a data registrada no atestado de óbito do seu amor próprio. Ainda assim, quando resgatando memórias num futuro não muito distante, seria também o motivo de descobrir que amor próprio é passível de renascença – ou despertar, caso tenha apenas adormecido:
- Eu precisava falar com você.
- Eu venho esperando por esse momento há muito tempo.
- Não fala nada. Deixa eu falar. Quando eu terminar você fala. Ou não, vai saber.
- Eu só queria entender o porquê.
- Vou te explicar o porquê. Ao mesmo tempo irei te dar todos os motivos para entender se você simplesmente, ao invés de falar ou não, virar as costas e for embora.
- Acho que o fato de você ter feito isso comigo é suficiente, não?
Arnaldo olhou para o chão. Lembrou do que acontecera semanas depois daquele reencontro. Já há alguns dias vinha rezando para que não se encontrassem novamente na presença do outro. Sempre tivera zelo pelo não rastreamento das conversas virtuais que nunca deixaram de ter. Um acreditava que elas não aconteciam. Outro não fazia ideia de que, minutos após a despedida, nem a lixeira do computador ficava com o arquivo daquela conversa por mais de cinco minutos. Ainda que atendidas quase sempre, a cidade pequena não permitiu que suas preces se fizessem fato para sempre. Sentindo o coração doer como nunca anteriormente sentido, Arnaldo passou rapidamente por ele, sendo um “oi” o único gesto recíproco aos braços abertos esbanjando saudade que lhe eram oferecidos.
- Eu sei, eu sei. Mas...
- Por acaso lhe falaram que eu não fui leal a você?
- Pelo egoísmo inerente ao motivo daquela minha atitude ridícula, eu preferia mil vezes que tivessem me dito isso.
- Oi?
- Eu preferia poder me dizer arrependido de ter desconfiado da sua lealdade do que de ter sido covarde ao ponto de enterrar meu amor próprio, porque era o amor do outro que eu acreditava merecer.
- Assim você me deixa confuso.
- Se eu tivesse no fundo de um poço e me dissessem que você não iria me dar a mão para ajudar, ainda assim eu ficaria esperando, porque eu sei que você ia.
- Eu ia mesmo.
- Eu sei. O que eu quero dizer é que preferia te pedir desculpas por não ter esperado que você aparecesse do que por, quando na minha vez de te puxar, te deixar esperando inutilmente, entende?
- Acho que sim. Ainda assim eu te daria a mão.
- Me disseram que você deu em cima de mim aquele dia.
- Eu? Como assim, gente?
- É. Você deu em cima de alguém que devia estar tão aéreo que nem percebeu.
- Mas eu não dei em cima de você.
- Eu sei.
- Então o que isso tem a ver?
- Isso tem a ver que, mesmo diante da certeza de minhas negativas, eu fui tão covarde que aceitei a condição de que, para permanecer nos planos futuros de alguém, eu deveria me desfazer de ti. Assim como o outro havia se desfeito de uma das cercas baixas que pulavas. Tem certeza que você ainda me daria a mão sabendo que ignorei completamente o sacrifício familiar que você um dia fez para continuarmos lado a lado ao te alocar no mesmo patamar que uma cerca baixa?
- Você não pediu para eu esperar até que dissesse tudo? – ele perguntou cerca de dez segundos depois que Arnaldo fitou novamente o chão, interrompendo a fala.
- Bom... Eu fiquei dias e dias ensaiando mentalmente como seria se eu te encontrasse. Aliás, como seria quando eu te encontrasse e estivesse acompanhado. Porque eu nem acreditei quando nos encontramos uma ou duas vezes e eu pude sentir teu abraço, ouvir tua voz sem me preocupar com nada além de te ter ali, mesmo que por poucos minutos. Mas eu tinha tanto medo de um eventual encontro estando com o outro que, naqueles minutos entre perceber que infelizmente aconteceria e eu te ignorar, eu percebi a inutilidade de um ensaio para aquela realidade. Sempre que eu penso sobre arrependimento, essa é a primeira lembrança que me vem na cabeça. Desde aquele dia eu sofria com a expectativa de como seria poder te pedir perdão. Eu só queria te pedir perdão – lágrimas escorriam dos olhos de Arnaldo.
- Ei, para de chorar.
- Deixa eu terminar. Você disse que ia esperar eu terminar. Eu escrevi uma carta para você – ele continuou após a afirmativa silenciosa do amigo. Acompanhava sua vida pelas redes sociais e queria saber mais de ti. Mas era tão covarde que gastei quase metade das linhas só com pedidos de segredo por aquele papel. E, não fosse só isso, ainda assinava em nome de outra pessoa. Primeira coisa: não precisava te pedir anonimato nenhum. Segunda coisa: enfrentar o medo deixou de ser uma opção? É, eu me escondi na sobra do outro de um jeito que abandonei minha própria sombra. Quando consegui o sol para mim eu percebi que faltava um guarda-sol ao meu lado. Faltava você do meu lado.
- Eu sou um guarda-sol?
- Você era o que eu precisava para finalmente poder me sentir renascido.
- Isso tudo é pelo seu próprio bem?
- Não. Não existe meu próprio bem e te falar nada disso. Só existe a explicação que você merece e os motivos para você se virar e ir embora.
- Tem mais?
- Talvez eu não estivesse aqui agora. Se eu não tivesse arriscado tanto talvez ainda me visse estagnado num beco sem saída. Mas consegui dar a volta e achei uma saída. E minha primeira parada não podia ser outra. Não dava para desbravar outros caminhos sem antes assumir todos os erros cometidos no percurso anterior. A gente pode até errar duas vezes, sabe? Mas aprender na primeira vez pode ser suficiente. E a dor de ter errado com você é impossível de descrever. Eu não quero errar assim de novo e, reconhecendo o erro, talvez eu seja uma pessoa melhor sim. Não para mim, mas para outros que, como você, só merecem amor.
- Sabe que... Desculpa, não esperei terminar.
- Fala. Pode falar.
- Sabe a história do poço? Então – ele continuou depois que Arnaldo balançou afirmativamente a cabeça – me dá aqui sua mão. Arnaldo, surpreso, levou a mão à dele – Se você tá no fundo do poço agora, tá aqui ó – ele fitou os olhos nas mãos unidas dos dois – estou te dando a mão.
- Você...
- Arnaldo... É claro que que gostaria muito de ter sabido disso tudo antes. Há anos que me pergunto o que aconteceu para você me tratar tão secamente aquele dia no cinema. Eu te afirmo até que teria entendido se você tivesse me falado. E talvez eu devesse ficar chateado, virar as costas e ir dar uma volta. Mas seriam dois trabalhos, sabe?
- Como assim?
- Eu ia, mas teria que voltar. Porque eu não iria jamais te deixar sozinho aqui – Arnaldo emudeceu-se, transformando quaisquer palavras que queriam sair em lágrimas – Eu acho que você aprendeu a lição. Eu também já errei. Mas tem uma coisa... Há anos que eu anseio por esse momento, não só para entender o que aconteceu, mas para te ver, te sentir, sabe? Isso é muito maior que qualquer outra coisa. O que é verdadeiro, pode passar o tempo que for, continua sendo verdadeiro. Amor, sabe?
- Eu... E...
- Não precisa dizer nada não. Agora não. Não perde tempo com palavras de desculpas ou perdão. Acho que temos muita coisa para contar um pro outro sobre os últimos anos. Vamos gastar saliva e lembranças com as novidades que dois amigos que não se veem há muito tempo tem para contar um ao outro.
- Você existe?
- A gente existe, cara. Isso não tem preço. Você é meu brotherzão, lembra?
- Ainda?
- Para sempre. Nunca deixou de ser.
- O que é verdadeiro, pode passar o tempo que for, continua sendo verdadeiro.