No rádio tocava a música que fizera parte daquela história. Mas, antes que pensem o contrário, não era uma história de amor. Dizia respeito, mais que qualquer outra coisa, à solidão. Há um ano e meio, ele mudara para outra cidade. Alugou um apartamento pequeno, na periferia e conseguiu um emprego na pizzaria em frente a praça próxima ao condomínio. Pagava poucos reais pelo mês, tinha que lavar a própria roupa e, de vez em sempre quando acabava a água, o banho era compartilhado na área da piscina. E apesar de possuir uma piscina, não quer dizer que ela era utilizável: água verde, muitas folhas e ninguém para limpar. A música que tocava no rádio foi lançada no dia em que chegou naquela cidade nova. Era, inclusive, de uns cantores locais, desconhecidos dele anteriormente. Falava algo sobre como sobreviver sozinho e, ao final, passava uma mensagem de esperança. Ele era meio viciado em qualquer coisa referida a auto-ajuda. Esse vício, ele sabia, tinha carregado da mãe. Sua vida inteira foi regada a livros daquele tipo. Era só o que lia. Nunca tinha se interessado por um Drummond, Veríssimo ou Lispector na verdade. Sentado na sacada - com um livro de auto-ajuda no colo - ele fechou os olhos e lembrou de cada detalhe significante em todos aqueles prováveis quinhentos e quarenta e oito dias. Ou melhor, tentou lembrar. Não existia um detalhe significante sequer. Ele mesmo decidira não guardar mais lembranças. Vivia cada dia como se seu último fosse, esquecendo qualquer coisa que acontecera anteriormente. Apagou da sua mente tudo o que viveu antes de partir de sua cidade natal. Não tinha mais família então não precisava sentir peso na consciência por não ligar para a mãe. E quanto aos amigos, deixou-os de lado. Decidiu que daquele jeito seria melhor. Ele apagaria todos de sua mente e consequentemente todos se esqueceriam dele. Ao fim da música a campainha do apartamento tocou. Ele não tinha pedido pizza, nem remédio, nem qualquer outro delivery, então realmente não imaginou quem fosse. Nem laços ele tinha formado com ninguém, então não podia ser ninguém do trabalho. Devia ser algum vizinho querendo ajuda. Abriu a porta:
- Oi.
- Oi. Co... Como você me achou aqui?
- Eu sempre te acho, rapaz. Dá licença, deixa eu entrar – e, carregando a mala, ela adentrou o apartamento antes mesmo que ele permitisse.
- O que você ta fazendo aqui?
- Ah, idiota! Para de querer ser solitário. Tu não nasceu pra isso não. Eu heim, nunca vi. E nem me venha com suas manias maníaco-depressivas que pra mim isso é tudo balela.
- Ma...
- Puta que pariu, Carlos! Lendo auto-ajuda de novo? Cara, acorda pra vida!
Ele não respondeu. Abaixou a cabeça e seguiu para o quarto.
- Epa! Pode voltar aqui, já falei pra você não vir pra cima de mim com essas suas loucuras.
- Eu só quero ficar sozinho, será que eu posso?
- Não.
- É minha casa. Você entra na minha casa assim, e ainda quer criticar o que eu ando ou não fazendo?
- Ah, deixa de ser mimado, cara! Vem, vamo descer, tomar um chopp, sei lá, qualquer coisa.
- Não.
- Então ta, vai lá pro seu quarto que eu vou descer, comprar uma caixinha daquela redondinha e volto pra cá.
- Ok.
- Não me venha com esse ‘ok’ de desdém, porque eu te conheço e é claro que vou levar a chave comigo, se não não consigo tomar um banho ou trocar de roupa depois.
- Tá sem água.
- Então tu vai ficar sentindo meu cheirinho agradável de MaCherrie.
- Ainda esse perfume?
- Claro, ué! Quem achou que precisava dar uma reviravolta na vida e esquecer de tudo foi você, não eu. Ah! Deixa eu ir logo e acabar com esse papo furado. Volto já.
Pegou a chave da porta e trancou o apartamento por fora. Ele não sabia o que fazer. Pensou em pular pela janela e fazê-la se sentir culpada. Mas ele não queria morrer. Ele só queria ficar sozinho e ela ia ter que entender isso. Decidiu. Ia realmente mandá-la embora. Ficou sentado no sofá, esperando ela voltar e quando chegou:
- Eu quero que você vá embora.
- Aham, ta, eu vou, mas você quer uma cerveja antes?
- Não.
- Ah, deixa de frescura, porra. Toma logo aí. – abriu uma lata de cerveja e colocou na mesa em frente a ele.
- Olha só, você quer que eu vá embora, eu vou. Mas antes, deixa eu te dar uma coisa.
- Não quero.
- Tá bom! Para de retrucar o que eu falo, cara! – abriu a mala e puxou um CD – Oh! Comprei no aeroporto. É uma banda daqui, nunca ouvi falar, mas tava rolando o som na loja e eu achei meio parecido com você. Mas antes de te entregar, preciso te dizer: pedi licença do trabalho. Não vim pra ficar aqui no seu apartamento, não. Aluguei um quarto num albergue aqui pertinho por duas semanas. Eu te conheço, Carlinhos. Sei que você precisa de um tempo, mas acho que esse tempo já deu. Vou ficar aqui por perto caso você queira conversar ou enfim, fazer qualquer coisa. Se não quiser, também, não tem problema, vou te respeitar. Mas escuta aí. Acho que vai te fazer bem.
Ela largou o CD na mesa, embrulhado em papel de presente, fechou a mala, seguiu rumo a porta e saiu. Ele permaneceu estático, não disse uma palavra e o único movimento que ousou fazer foi virar a lata de cerveja inteira dentro do jarro vazio ao lado do sofá. Voltou para a sacada e continuou a ler seu livro. Mas, sempre muito curioso, ele não se agüentou. Rendeu-se: foi até a geladeira, pegou uma lata de cerveja e resolveu ouvir o que ela tinha deixado pra ele. Qual não foi sua surpresa ao perceber que ela o conhecia bem melhor do que ele mesmo. O CD era de uns cantores locais, desconhecidos anteriormente dele, que tocavam uma música que falava algo sobre como sobreviver sozinho e, ao final, passava uma mensagem de esperança.