Monday, August 25, 2014

quatro dígitos


Então chegou o dia que eu tanto temia. A conta do telefone estava em cima da mesa quando cheguei da aula. Não fosse pela lateral rasgada eu teria sorrateiramente dado fim àquele envelope. E antes que pudesse seguir rumo ao meu quarto silenciosamente na ponta dos pés, sua voz grave me convidou a adentrar seu escritório no fim do corredor. Ao perceber sua feição indignada, ensaiei rapidamente um pedido de desculpas, mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, um grito ensurdecedor se originava de sua garganta, me deixando ciente do número de quatro dígitos que havia dentro daquele envelope.

O senhor disse que não queria saber de nada naquele momento, que eu deveria ir para o meu quarto pensar sobre minha vida e, principalmente, sobre como eu iria passar os próximos meses sem receber minha mesada. Não quis confrontá-lo, afinal era o senhor quem estava com a razão naquele momento. Segui para o quarto cabisbaixo. O peso da culpa começava a se instalar sobre minha cabeça. Era isso que acontecia sempre que eu não conseguia pensar direito sobre minhas atitudes. Eu era culpado e pronto, não havia mais o que fazer.

Já no quarto, deitei na cama e fitei a fotografia que se sobrepunha às outras no mural fixado na parede. Lá estava ela. Nossa primeira foto havia sido tirada em máquina analógica, tão rara nos dias atuais. Mas ela tinha essa coisa meio tradicional. Naquele dia em que registramos nossa primeira lembrança física, ela havia me contado sobre como era apaixonada pelas máquinas fotográficas que não permitiam analisar o conteúdo da fotografia antes de revela-las. De qualquer forma, aquela imagem não precisava de nenhum retoque ou qualquer outra versão. Era perfeita do jeito embaçado que era.

Olhei para a estante quase vazia em cima do mural. Um único livro estava em posição que destoava dos outros. Lembrei de quando a vi chegar no restaurante com aquele pacote e de como me senti mal por ter esquecido do combinado de trocarmos objetos pessoais para manter a memória vívida quando estivéssemos em nossos lares, geograficamente distantes. E de como ela serenamente olhou-me nos olhos e disse que não precisaria de nada para lembrar de mim. E que sabia que eu também não precisaria disso. Ela apenas passara na livraria vizinha ao restaurante e se interessara pela sinopse nas costas do livro. E sentiu-se tão bem com a leitura que me enviou pelo correio alguns dias depois para ver se eu gostaria tanto quanto.

Seus passos arrastados pelo corredor me fizeram deixar as lembranças de lado e voltar para o presente. Quatro dígitos numa conta de telefone era algo realmente incabível para o orçamento mensal da nossa família. Mas aí isso também me fez lembrar dela. Todas aquelas horas com a orelha colada ao telefone podem não fazer sentido para o senhor, mas fazem muito sentido para mim. Já estamos chegando ao fim do primeiro mês depois daquele fim de semana em que a conheci. E eu estou apaixonado. E a paixão é algo que só faz sentido mesmo para quem está apaixonado.

Lembrei da única vez que algo semelhante acontecera, anos antes. Por isso já conhecia todo o discurso que viria no dia seguinte. O senhor iria me falar sobre as ilusões da vida, sobre cercear a intensidade de minhas atitudes, sobre relacionamentos à distância já destinados ao fim e, por fim, me questionar sobre o que eu espero para o meu futuro. E eu, muito provavelmente, iria baixar a cabeça, dar-me por vencido, passar os próximos meses sem receber mesada e, por fim, dar por encerrado aquilo que o senhor me faria acreditar ser apenas uma ilusão.

Mas resolvi fazer diferente dessa vez. Então sentei-me na escrivaninha e resolvi lhe escrever essas palavras. Antes de qualquer coisa, para lhe pedir desculpas. Sei que me excedi e que isso vai pesar mais no seu bolso que no meu (apesar de acreditar que, dessa vez, o corte da mesada vai realmente ser compatível com o valor da conta). A distância geográfica entre eu e ela também é um número de quatro dígitos. São coisas diferentes, mas enquanto o seu número pesa no bolso, o meu pesa no coração. Então o que eu quero mesmo é dizer-lhe que, ainda assim, valeu à pena. Não importa se vai pesar no meu bolso, porque não há como comparar tal peso com o alívio que esses quatro dígitos trouxeram ao meu coração.

Pode ser que, como da outra vez, tudo não passe de uma ilusão. Eu sei que sou intenso e me doo de corpo, alma e coração quando estou apaixonado. Sei que as estatísticas comprovam o fracasso da maior parte dos relacionamentos à distância. E também sei que vez ou outra deixo transparecer que não penso sobre meu futuro. Mas... e se? E se não for uma ilusão? E se essa intensidade toda for mais solução que problema como a maioria interpreta? E se formos exceção à regra das estatísticas? E se esse não for o futuro que o senhor espera para mim, mas aquele que definitivamente me levará a um final feliz?

Peço sinceras desculpas novamente. Mas, dessa vez, não me darei por vencido. Ainda que venham as mais variadas consequências quanto ao que estou vivendo nesse momento, eu as irei receber de cabeça erguida. Porque pode ser que esse caminho realmente me leve, como já disse, a um final feliz. E, respondendo antecipadamente o seu questionamento sobre o que eu quero para a minha vida, ser feliz sempre será o que eu mais quero para o meu futuro. 

Eu te amo muito.
Carinhosamente,
Seu filho.

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