Sunday, August 24, 2014

nocaute

O fato de ter nascido em uma família de estatura baixa sempre me incomodou muito. Além disso, durante boa parte de minha infância eu me mantive acima do peso. Pronto, dois requisitos para ser alvo de piadinhas dentro da sala de aula. Não fosse suficiente, o fato de ter sido crescido numa casa com cinco mulheres me proporcionou alguns trejeitos meio delicados, o que fazia com que, mesmo gostando de meninas, fosse pejorativamente chamado de veado.

Quando adentrando a pré-adolescência, as piadinhas viraram agressão. Era comum ser vítima do que meus colegas de escola chamavam de corredor polonês. Sempre na volta do intervalo, antes de adentrar a sala, os garotos maiores solicitavam uma senha, sabida apenas por eles, como desculpa para a "brincadeira"que frequentemente me deixava cheio de hematomas. Minha mãe fora diversas vezes à escola, mas por lá sempre a convenciam que eu não era apenas vítima, mas cúmplice de tais atos.

Não à toa, quando com doze anos, na primeira vez em que, além dos vários hematomas pelo corpo, eu cheguei em casa com a roupa rasgada, ela me deu uma surra. Era notório que eu colaborava para causar aquelas confusões, acredito eu. A partir desse dia, passei a colaborar realmente, pedindo àqueles trogloditas que me batessem em lugares que não fossem visíveis quando vestido. Era mais fácil guardar humilhantemente aquilo para mim que explicar para os outros o que acontecia.

Coincidentemente, nessa mesma época, as artes marciais entraram para o rol de atividades das aulas de educação física. A fase acima do peso havia passado e agora eu sofria pelo corpo esguio que me deixava ainda menor do que realmente era. Na aula de abertura fomos apresentados ao instrutor, que recomendou algo que eu só entenderia tempos depois: deixar a raiva do lado de fora do tapume. Para mim, um garoto de quase treze anos, sofrendo agressões desde os cinco, aquilo era impossível. Mas fingi concordar e passei a frequentar as aulas.

Conforme as semanas iam passando fui me tornando mais próximo daquele professor, a quem respeitosamente passei a chamar de mestre, depois de ler alguns livros e entender mais sobre as artes marciais. Quando a poucos de dias de completar quatorze anos, convidei-o para a festa do meu aniversário. Por incrível que pareça, naquele aniversário ele era a única pessoa da minha escola a ter sido convidado para a festa. Eu me tornara uma pessoa solitária e ele era o mais próximo que eu podia chamar de amigo. Aquele aniversário ficou marcado como o dia em que ele e minha mãe se apaixonaram um pelo outro, o que o faria, anos depois, deixar de ser apenas meu mestre e amigo e tornar-se meu padrasto.

Mas aquele dia também foi quando consegui me abrir com alguém depois de tantos anos calado. Ao ser perguntado pelo por quê de não ter nenhum colega da escola em minha casa, baixei a cabeça e disse que os três amigos que convidara tinham um outro compromisso já agendado anteriormente. Ele pareceu surpreso, mas tentou confortar-me colocando a mão em meu ombro e dizendo que essas coisas acontecem de vez em quando e que eu não deveria ficar magoado, pois não queria dizer que eles não gostavam de mim. Mas dias depois, quando nos encontramos na aula de educação física, percebi que eu não havia sido muito convincente naquela resposta.

Depois de dispensar toda a classe, ele me convidou para ir até a sala de professores que àquela hora estava vazia. Pediu que lhe ouvisse e respondesse uma pergunta depois. Concordei de bom grado e sentamos de frente um pro outro com a mesa entre nós. Seu nome era Marcos, era divorciado e tinha uma filha de cinco anos. Na época da escola era um dos alunos mais populares: bonito, forte e inteligente. Nunca fora alvo de piadas ou chacotas. Pelo contrário: era respeitado por todos. Ou melhor dizendo, era temido por todos. Principalmente pelo medo que gerava na maior parte dos colegas, quase todos menores que ele.

Um dia um novo aluno, cansado das piadinhas que ele fazia, o desafiou em frente toda a sala. Pelo tamanho do garoto, ele primeiramente sentiu pena em aceitar aquela proposta. Mas isso também o transpareceria covarde, o que não faria bem para sua reputação no colégio. Ele não precisava bater demais. Apenas um soco no estômago seria suficiente para derrubar o garoto. Ainda que tenham se passado anos, ele nunca esqueceu a humilhação sofrida em frente a todos os alunos com aquela surra inesperada que levou. No dia seguinte ele mudara de escola. E foi no novo colégio que ele conheceu as artes marciais e se apaixonou por elas.

Então, depois de um longo suspiro, ele perguntou se aqueles meses de treinamento já haviam me feito deixar a raiva de lado. Percebendo minha reação surpresa, ele explicou que, como suas aulas eram em turno diferente das outras, havia conversado com alguns alunos e outros professores sobre minhas relações interpessoais na escola, entendendo assim o por quê de meu desempenho nas aulas de educação física ainda não estar tão satisfatório depois de tanto tempo, mesmo ele já tendo percebido um enorme potencial em mim. Eu apenas baixei a cabeça e levei-a de lado a outro numa negativa calada. 

A vantagem do pequeno é que ele é ágil. Eu levantei os olhos em sua direção. Ele sorriu com o canto dos lábios, pediu que eu pensasse sobre aquela afirmativa e fizesse um esforço para deixar a raiva fora do tapume na próxima aula. Na semana seguinte, antes de adentrar o ginásio, respirei fundo e pedi a mim mesmo que conseguisse deixar que a raiva e a humilhação sofridas ficassem antes da porta. Naquele dia Marcos anunciou que teríamos que passar por um desafio para testar nossas habilidades. Quem vencesse as lutas iria passar para as próximas etapas, até termos um único vitorioso, que seria indicado por ele para o campeonato municipal.

Imaginei que, por já saber o que acontecera comigo, ele me colocaria para lutar com alguém com quem eu pudesse lutar de igual para igual. Mesmo tamanho, mesmo peso, mesmas dificuldades. Qual não foi minha surpresa quando percebi que ele já citara o nome de todos meus colegas de sala, exceto o meu e o do outro que mais me batia. Virei de costas e fui seguindo rumo à porta quando ele anunciou minha luta como a primeira, exigindo que eu retornasse de onde estava, caso não quisesse reprovar. Fitei-o  assustado, pedindo clemência com os olhos. Ele apenas sorriu. A raiva tomou conta de mim enquanto seguia na sua direção. Disse-lhe que me reprovasse, que eu não seria humilhado daquele jeito e que estava decepcionado com ele.

Marcos pediu licença aos alunos e pediu que eu o seguisse até o canto do ginásio. Esquece esse medo de machucar o outro que está te machucando. Eu não tinha medo de machucar o outro. Eu tinha medo do outro. E não via qualquer meio de vencer um outro maior que eu. A decepção que sentia por ele impedia que a raiva e irritação se manifestassem. Pedi humildemente que ele trocasse meu oponente, que escolhesse alguém do mesmo nível que eu. É desse oponente que você deve ter medo, não do que eu escolhi pra você. O temor fez meus olhos encherem de lágrimas. Eu não faria isso se não acreditasse em você, rapaz. O que eu preciso é que você acredite nisso também. Dei-me por vencido. Talvez fosse chegada a hora de atestar minha incapacidade mesmo. Eu já estava acostumado, afinal. Seria apenas mais um dia comum.

Joguei a mochila no chão e voltei para o centro do ginásio. O outro já estava lá, sorrindo e fazendo com que eu entendesse o movimento dos lábios enquanto me dirigia palavras pejorativas em silêncio. Pensei naqueles anos todos, em meu abdômen frequentemente roxeado, na tortura mental diária e percebi que a raiva ia se fazendo maior que a decepção com Marcos. Antes de adentrar o tapume, senti a mão do homem a quem já não considerava meu mestre em meu ombro. Esquece a raiva, ele disse. Você vai vencer. É só não esquecer disso: quanto maior a árvore, maior o tombo.

Respirei fundo. O outro vinha em minha direção, ainda sorrindo. Fiquei inerte, não fosse pelo punho cerrado distanciando de meu corpo enquanto cerrava os olhos, como se preferisse não ver o momento em que seria levado ao chão. A mente tornou-se vazia de repente, fazendo-me acreditar que deveria estar a caminho do paraíso depois da surra. A mão latejando me trouxe de volta. Ao perceber que apenas um par de mãos cortava o silêncio, abri os olhos e pude ver Marcos batendo palmas. O outro estava ao chão, com as mãos no rosto tentando conter o sangue que escorria não sei se do nariz ou da boca. Foi nocaute.

Mesmo com todo o esforço dedicado aos treinos depois desse dia, não ganhei de nenhum outro oponente nas semanas seguintes. Mas nenhum campeonato seria capaz de me fazer sentir mais vitorioso que depois de encerrar aquela luta de dez anos com um único golpe.

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