Era pequena. Cabia em qualquer lugar, em qualquer
verso de poema ou parágrafo de contos da vida real, orgulhosa de só desfilar mais
estatura com os saltos do coturno, dos tênis surrados, das poucas sapatilhas ou
das sandálias rasteiras que tinha coleção. Não precisava mais que uma tênue
divisória entre a sola dos pés e o chão gelado do campo, da montanha, do
trabalho ou da sala de estar. Mas tinha regra: no quarto, só pés descalços. Não
via sentido naquela necessidade que os outros tinham de proteger os pés dentro
do único lugar onde podiam fazer-se livres para caminhar. Limpava o aposento
diariamente, mas vez ou outra preferia encarar a poeira do assoalho a entrar de
coturno, tênis surrado, sapatilha ou sandália rasteira que levassem para dentro
do seu mundo a sujeira alheia acumulada pelas solas gastas no mundo lá fora.
“Sou pequena”, era comum ela dizer tão logo eu ria
de alguma das suas observações hilárias ditas com seriedade – se organizar direitinho, todo mundo transa
– ou baixava a cabeça depois de ouvi-la comentar sobre aquele dia desanimado - tem dia que é tranqüilo só
pra maré encher de repente e a gente se afogar. “Sou pequena” era a
resposta certa de algumas das perguntas que ela me fazia e eu nunca acertava – Heineken, sabe? – ou de perguntas que
ela não colocava interrogação no fim porque eram perguntas só dela – mas eram corujas dançantes, não podiam
esperar pelo wi-fi - ou até daquelas que ela ouvia o cantor perguntar
baixinho nos fones de ouvido – o que te
sobra além das coisas casuais? Sou
pequena, ela dizia, não me cabe muita
coisa e eu não sou tão casual, sabe?
Pequena, corpo curto tal qual lhe era o tempo que passava. E muito
daquele curto tempo dela ficava no mundo grande lá fora – onde as solas dos
coturnos, tênis surrado, sapatilha ou sandália rasteira acumulavam a sujeira
dos outros que acreditavam ter mais tempo não porque fossem grandes, mas porque
eram maiores que ela. Para o pequeno quarto pouco tempo lhe restava e os
calçados à porta eram mais que deixar os pés descalços: livravam-na do tempo
gasto com nós e laços nos cadarços e, ao invés de perde-lo limpando mais a
sujeira dos outros que apenas aquela inevitável à liberdade dos pés descalços,
tratava de pintar as paredes, mudar os móveis e trocar as lembranças que ainda
estavam à mostra nas prateleiras, mas não na memória. Era pequena, afinal. Não
lhe deviam caber memórias desnecessárias.
Eu era pequeno também. Não tanto quanto ela, mas era. E o fato de vê-la
pequena e não menor que eu permitiu-me conhecer o seu pequeno mundo, onde pés
descalços eram a única regra sem exceção. Sou
pequena, ela disse, meu tempo é curto
e eu escolhi reger o que resta dele com uma única regra sem exceção. Deixei
o par de chinelos no tapete, compartilhando do acúmulo de sujeira alheia em sua
sola junto ao coturno, tênis surrado, sapatilhas e sandálias rasteiras, todos
carregados da aparência calejada do mundo de fora. Dentro daquele pequeno mundo
ela nem era tão pequena. Sabe o que eu
descobri? Ela perguntou e, quando respondi que era pequena pela primeira
vez e já perdi as contas de quantas errei, ela riu e disse que finalmente eu
acertara a resposta da pergunta errada. Eu
descobri que quando a gente é livre a gente não tem tamanho.
“Sou pequeno”, eu disse quando ela fez uma daquelas observações hilárias
ditas com seriedade – se o mundo acabasse
eu ia tomar muito ácido. “Você é pequena”, eu disse em seguida. Ela riu e
disse que eu finalmente tinha entendido. Eu não tinha entendido, só achei que
aquela ia ser a resposta certa em algum momento. Você entendeu, só não sabe ainda que entendeu, ela disse antes de
sorrir aquele sorriso que lhe diminuía suavemente os olhos. Descalçou os tênis
surrados escolhidos para aquele passeio no parque e pousou os pés na grama sob
o banco onde estávamos sentados. Ás
vezes, quando eu decido ir andando do trabalho pra casa, ela disse, eu paro no meio do caminho e tiro os
calçados, sabe? Aí passeio com os pés descalços só pra sentir um pouco dessa
grandeza que é o mundo de fora. Tem dias que eu levo umas flores, compro um
pôster novo, descubro que queria uma coisa e nem sabia que existia. Mas eu sou
pequena, sabe? Não me cabe muita coisa. E tem dia que eu tiro aquelas flores
murchas de lá, rasgo o pôster da parede e me desfaço de lembranças que nem
existem mais.
Pequeno. Flores murchas, pôster na parede, coisas que não existiam e
lembranças que se foram. A louca falava de uma viagem de ácido no fim do mundo,
eu disse assim mesmo na terceira pessoa. Pensa
bem: o mundo acabando, não tem o que fazer MESMO e tu sabe que vai morrer. Véi,
imagina a viagem alucinante que ia ser esse fim do mundo – era aquela
pergunta sem interrogação que ela respondia a si mesma em seguida – Eu sou pequena. Ia ser uma viagem muito
doida. Foi a primeira vez que eu não ri de uma observação hilária dita com
seriedade, porque percebi que não fazia do sério algo digno de riso. Ela
realmente tinha subido na cama de uma casa de suingue e gritado pra geral que
se organizasse direitinho todo mundo transava. Hoje vou de Original, deixa a Heineken pra outro dia. Só uma regra sem
exceção, lembra?
Éramos duas gotas no oceano, dois grãos de areia no deserto, duas
agulhas num palheiro, dois pequenos que conseguiram se encontrar no mundo
grande de fora. Tinham meses que não a encontrava e aquela conexão de quatorze
horas nos permitiu assistir ao pôr-do-sol brindando minha cerveja preferida.
Estava apaixonada, a pequena. Deixara seu pequeno mundo de portas trancadas
para aventurar-se noutro que ela nem sabia se era pequeno, grande, menor ou,
pior, maior que o ela. Mas estava apaixonada. Sou pequena, sabe? E só existe uma regra sem exceção na minha vida. Pés
descalços, eu disse, minha voz e a dela se misturando. Teve a exceção de não
largar o emprego com exceção de um eventual risco de morte – pedi demissão, a de nunca mexer na
poupança - quitei o apartamento com o que
tinha na poupança, e, o que eu sempre acreditei que viesse a ser uma
segunda regra sem exceção, aquela de não entregar seu pequeno mundo a outro
alguém – daí aluguei o apartamento por
seis meses pra uma prima que conseguiu um emprego temporário por lá.
O que era uma única regra sem exceção quando ela tinha tantas outras
exceções a realizar. Eu disse que não era
de casualidades, ela disse, séria, interpretando meu riso como
desaprovação. Eu não ria dela, eu ria do fato de ela ser pequena. Eu ri porque
foi engraçado perceber o que nem ela percebia ainda: de fato era pequena a
menina, mas – depois de mais acertar que errar as respostas de suas perguntas;
de esbarrar chinelos e sapatos no coturno, tênis surrado, sapatilhas e
sandálias rasteiras em cada visita ao mundo particular dela; de cogitar suas
possibilidades criativas sobre escapar de alguns problemas e ter tido sucesso
em cem por cento das tentativas criativas – se fizera tão liberta no pequeno
mundo dela que, nesse mundo de fora, era maior que muita gente que se achava
grande. Se alguém aprender a regra, eu
fico. Se não aprender, eu sou pequena e até o amor tem exceção, ela disse
antes de deixar o copo vazio em um único gole.
Ser pequena e maior que muita gente, vantagem de ser livre, fruto de sua
liberdade. Acho que vou descer até a
praia rapidinho, ela disse. Era dia de flores, pôster novo, descoberta de
um querer que não existia. Ser pequena no mundo dela era ser maior que muita
gente no mundo de fora. Quando a gente é
livre a gente não tem tamanho, eu lembrei ela contando aquela descoberta.
E, apaixonada, estava ainda maior do que na última vez em que eu a vi se
aventurar no mundo de fora, três anos antes, em mais uma de suas exceções: um
cruzeiro em costa brasileira, sete meses depois de dizer que nunca faria um
cruzeiro que não fosse no mínimo até a Argentina, dois meses depois de se
apaixonar por um barman esquisito e numa ressaca que ela prometeu nunca deixar
essa exceção se repetir.
Pequena. Apaixonada. Maior que muita gente. Sem tamanho, do píer eu a ouvi gritar enquanto sentia o desidratar
do sal nos pés descalços. “Sem tamanho”, eu disse quando ela voltou, e disse
que muito do que eu sabia de mim era por causa dela e sem tamanho era o quanto
eu lhe podia ser grato por isso. Sem tamanho era o amor, eu quis dizer. Sem tamanho é o amor, ela disse, eu também amo você. Mas éramos pequenos,
dois pequenos fazendo daquele encontro a viagem de ácido naquele fim do mundo
que era preencher de saudades dos tempos que não se viam as reservas de
saudades para os tempos que já sabiam que ficariam sem ver dali algumas horas.
E ela estava apaixonada. Ia aventurar-se em outros mundos, experimentar o sabor
de uma culinária diferente, aprender um novo idioma porque se encantou por
aquele francês que ouvira outro dia na televisão.
Sou pequena,ela respondeu quando eu
perguntei se pelo menos o endereço do moço, e
eu sei que já disse não ter tempo para casualidades, mas, véi, você acha mesmo
que eu ia pedir demissão, zerar a conta e alugar meu apartamento porque me
apaixonei por um cara da televisão? Era aquela pergunta que o tamanho dela
não era a resposta certa dessa vez. Estava apaixonada. Suis petit, ela disse. E repetiu quando eu dei de ombros sem
entender. Suis petit. Lembra quando eu disse que era do tipo
primeira versão porque sou pequena e não gosto de perder o meu tempo com tempo
que o outros perderam editando o que as vezes só precisava de uma imperceptível
correção sem perda de tempo algum? Eu lembrava. Era uma daquelas vezes em
que eu queria ser grande demais e ela me lembrava a diferença entre crescer e
amadurecer. E ela sempre fazia eu me sentir grande. E eu nunca me sentia maior
que ela. Cansei de ser pequena em
português, sabe? Agora vou ser pequena em francês, que suis petit e meu tempo é curto pra eu gastar com um só
idioma. “Suis petit”, eu repeti, “sou pequeno”, eu ri. Viu? Ainda que, hora ou outra, você demore pra perceber, você sempre
entende. A gente é pequeno, sabe? Eu sabia. E, desde o dia em que nos
conhecemos, eu nunca deixei a sujeira do mundo grande de fora contaminar o meu
mundo pequeno de dentro. Ela ia à França, talvez nos encontrássemos em Paris.
Suis petit, minha voz e a voz dela se misturando no portão de embarque. Suis
petit.
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