Acordei desolado, abandonado, vazio, sem cor. Levantei da cama já marcada pelo formato do meu corpo e, ao olhar o espelho, percebi-me petrificado dentro de um corpo quase desfalecido pelo tempo perdido que há muito eu buscava encontrar. Perdi-me no tempo de outros pensamentos, de outras vontades, de outros quereres e outras tantas coisas que nunca sequer cogitaram pertencer a mim, só a outros que em mim se fizeram encontrar. Despertei das profundezas de quase vinte e quatro horas de sono, carente de sonhos e esgotado de pesadelos, e percebi o silêncio interrompido pelo rasteiro caminhar dos ponteiros daquele relógio de parede, dono do tempo que eu não encontrei.
Acordei desolado, abandonado, vazio, sem cor. Avistei os resquícios da luz solar no parapeito da janela, disfarçando-se de escuridão através das cortinas cerradas, e fiz daquele entardecer de domingo o momento em que me vi sozinho num mundo preto e branco que eu desenhara colorido e perdera o tom. Levei as mãos ao rosto e enxuguei o salgado das lágrimas que tinham se perdido no tempo. Tinha um tempo já que meus pecados faziam dos olhos uma fonte úmida de culpa, mas seca de arrependimentos. Tempo de outros cujas lágrimas me fizeram descolorir. Era eu o lápis branco nos estojos de pintura: inútil para qualquer atividade em fundo de mesma cor. E as folhas eram sempre brancas.
Acordei desolado, abandonado, vazio, sem cor. Tempo perdido era aquele antes do sono e ao acordar. Fechar os olhos me permitia enxergar de um jeito só meu, sem aquela curiosidade alheia que me fazia perder o tom. Fossem sonhos ou pesadelos, ainda assim tinham a peculiaridade de, consciente ou inconscientemente, representar meu modo de ver o mundo. Era de olhos fechados que eu podia encontrar aquele tempo, ser lápis de outra cor e umedecer os olhos de orgulho e amor por mim mesmo. Mas, ao olhar o espelho e ver-me como uma velha carcaça desgastada pela decomposição, percebi que era também de olhos fechados que eu deixava aquele tempo passar perdido sem conseguir me encontrar.
Acordei desolado, abandonado, vazio, sem cor. O tempo passara opaco, desviando minha atenção para o tempo dos outros que não o viam passar. Lápis branco só quando para clarear as demais cores na folha branca. Orgulho do outro umedecia tanto os olhos quanto dar amor a quem não o tinha por si. O ponteiro do relógio interrompendo o silêncio, se fazendo trilha sonora do fracasso de se perceber perdido ao encontrar o tempo que há tanto buscava. De olhos fechados não o via passar. De olhos abertos o deixava simplesmente passar. Tempo perdido. Lápis branco. Olhos úmidos.
Acordei desolado, abandonado, vazio, sem cor. Pus o dedo em riste e, fosse aquela escuridão uma folha de papel, ser um lápis branco não seria tão inútil assim. Ainda havia esperança para aquela carcaça refletida no espelho, afinal. O corpo desfalecia porque estava tão escuro por dentro quanto meu quarto naquele entardecer de domingo. A culpa secou e me vi à deriva em um mar de arrependimentos, os ponteiros do relógio mais parecendo o som de trovejadas nervosas. De olhos abertos eu me acostumei à escuridão, tropecei nas suas dificuldades e fiz do reflexo no espelho uma monocromática silhueta.
Acordei desolado, abandonado, vazio, sem cor. Era quase seis da tarde, mas o pôr-do-sol ainda não encerrara seu espetáculo para a primeira noite de lua cheia do ano. De olhos fechados eu sempre via aquelas cortinas abertas, mas de olhos abertos eu era um lápis branco sem utilidade quando só. Levantei da cama já marcada pelo meu corpo, dei vazão ao entardecer do lado de fora da janela e senti a dor de iluminar os olhos acostumados com a escuridão. A silhueta no espelho ganhou novamente os traços de um corpo quase desfalecido, mas perceptivelmente em recuperação. Ouvi um bando de pássaros cantarolar ao longe e percebi que o silêncio já não era interrompido pelo rasteiro caminhar do ponteiro do relógio.
Acordei desolado, abandonado, vazio, sem cor. Me perdi buscando o tempo de olhos fechados, quando só o podia encontrar com eles abertos. E precisei sair da escuridão para me encontrar. Esfreguei os olhos até acostumar com a claridade e pude ver uma lua cheia surgir no horizonte tão reluzente quanto um sol às seis da manhã. Depois de quase vinte e quatro horas de sono eu fiz daquele o meu primeiro bom dia. Abrir as cortinas foi como perdoar a mim mesmo pela carência de sonhos e fartura de pesadelos. Deixei meus pecados, arrependidos pela sua existência, escorrerem pelos olhos e senti nos lábios o gosto salgado de minha punição.
Dormi nocauteado pelo peso de uma existência insignificante, fruto da percepção de se saber um inútil lápis branco esquecido no estojo de pintura. Fiz da escuridão o meu reduto porque o reflexo no espelho era demasiado indesejável de se ver. Escolhi entregar-me aos efeitos de alguns comprimidos para tentar não despertar tão cedo das profundezas de um sono que fizeram eternidade de quase vinte e quatro horas inertes no mundo real. Acordei desolado, abandonado, vazio, sem cor.
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