Tirou o espelho do fim do corredor e levou ao banheiro. Era aquele o único capaz de refletir seu corpo inteiro. Cansou de envergonhar-se do seu, mas só cansar não bastava para desavergonhar: precisava se conhecer, desvendar cada marca recém descoberta e perdoar aquelas com que já estava acostumado. Despiu-se por completo, calças, gravata, tantos botões e aquela roupa de baixo desbotada pelo tempo, rasgada pelo desgaste. Óculos não conta. Contava. Queria ver-se da forma que verdadeiramente via, sem qualquer disfarce. Eram os óculos responsáveis pela identidade secreta do super-homem, afinal.
Vista embaçada, permitiu-se não enxergar alguns defeitos. As marcas nos ombros, pernas e braços ele fazia questão de rever. Não via razão para perdoá-las. Ou já o havia feito anos antes ou elas, na realidade, eram o adubo utilizado para aqueles centímetros a mais que o fizera o menos baixo da família. Esticou os braços, frente, cima, opostos. Tentativa fracassada de ser um modelo vitruviano de da Vinci. Mas tão desproporcional e imperfeito que o fato de ser indefeso lhe dava um pouco de beleza. Barba falha, rosto inchado, sobrepeso. Era só defeito por fora, indicava o reflexo à sua frente.
Quinze metros quadrados, pé direito inalcançável, quatro paredes de louça gélida, mas já quase insuportavelmente sufocadas pelo sol que irradiava pelos basculantes e há dias não dava trégua: graus célsius em excesso, sensação térmica de pernil bem passado do Natal, ele pensava. O reflexo no espelho era como um monólogo cuja première lhe era exclusiva. Só cansar não bastava, afinal. Antes de iniciar aquela jornada precisava se desconstruir, colocar os pingos dos próprios “is” e revelar-se por completo para si mesmo. Tentava olhar-se com orgulho, mas só conseguiu fazer transbordar pelos olhos toda aquela angústia dentro dele.
Lembrou da vó que perdera ainda na infância. A única que conheceu e com quem comemorou onze daqueles vinte e sete aniversários até ali celebrados. Meses antes de sua partida ela lhe presenteou com um baralho idêntico ao que ela usara para lhe ensinar a jogar paciência lá pelos cinco anos. Disse a ele que descobrira um novo modo de jogá-lo, sem a possibilidade de se frustrar com a inexistência de uma próxima jogada. O sorriso que se seguiu à lembrança cessou a vazante que por pouco não lhe grudara as pálpebras.
Paciência. A vó dele sabia das coisas. Ele era um castelo de cartas. Sem agrupamento por cor, naipe ou numeração, sabe? Livre. Cada uma das cartas condicionadas simplesmente a se unirem para sustentar o posicionamento das duas cartas finais, ela tinha lhe dito. Quando, dias depois, ele conseguiu chegar ao topo pela primeira vez, a vó lhe entregou cartas de tamanhos, cores e estilos diferentes e pediu que as inserisse por entre o castelo de cartas que ele havia demorado dias para construir. Paciência, ela disse enquanto piscava um olho e colocava uma de suas cartas por entre um dos triângulos do terceiro andar, e com nenhuma jogada impossível.
Por dias ele precisou começar do zero quando, por descuido, levava todo o trabalho ao chão. Percebeu que, vez ou outra, quando conseguia que o descuido não fosse tão devastador, eram as cartas avulsas responsáveis pela maior firmeza daquela área preservada. Começou novamente do zero, encaixando as cartas extras conforme ia subindo os andares. Assim não vale, disse a vó poucos dias antes de partir, é essa a única regra: no térreo só o seu baralho. Ela não chegou a ver o trabalho concluído e, no dia seguinte à sua morte, ele se desfez de todas as cartas e só usava o computador para jogar única e exclusivamente com azar ou sorte no campo minado virtual.
Mas a vó dele sabia das coisas. E ele era um castelo de cartas. Conseguira alcançar o topo pela primeira vez, somente suas raízes na base que sustentava toda aquela estrutura carregada dos mais diferentes tipos de cartas. Algumas maiores, outras sem valor ou com qualquer valor. Ele era um castelo de cartas, de raiz fragilizada pela quantidade de descuidos, desconstruções, e muda essa de lugar e muda aquela. O reflexo no espelho, ele despido, tremeu os lábios e se deixou sangrar salgado e transparente. Viu-se deixando despencar andar por andar, até que nada mais existisse se não um estirado de sonhos, desejos e vontades pelo chão.
Mania de luz acesa, nem percebeu que lá fora já era noite. Ainda sufocava, suando de angústia e engasgado pela derrota. Desconstruir o que já estava destruído não era motivo de alívio, mas decepção com aquilo que era e que nem via futuro algum para ser mais que uma decepção. Lembrou da vó, no térreo só o seu baralho, pensou que talvez fosse hora de comprar um baralho novo e começar do zero novamente. Começar de dentro para fora, renovar o espírito e reerguer a alma que, naquele momento, era como aquelas roupas pelo chão: aparentemente abandonadas e sem uso, só faziam completo sentido quando juntas ao corpo. Alma frágil, imune à desistência, mas contaminada pela covardia de não ser quem se é porque o reflexo no espelho lhe mostrava alguém que ninguém merecia conhecer.
No térreo só o seu baralho. Aproximou-se do espelho para ver mais de perto aquelas marcas que o tempo já o fizera acostumar: doze cicatrizes vistas como em dégradé conforme os movimentos do corpo faziam dança com a lâmpada amarela do teto. São parte de mim, isso sim, pensou. Não tinha porque perdoá-las, nem a si mesmo, afinal. Estava nu, sem qualquer vergonha de encarar-se no espelho, mas segurando aquele transbordamento que forçava cada vez mais as pálpebras. Era a vó dele que sabia das coisas, ele não. Ele era o castelo de cartas, de base sempre fragilizada ao ter o topo alcançado. De dentro pra fora, ele repetiu para si no seu silêncio mental. E se deixou transbordar.
No térreo só o seu baralho. Ia começar do zero, era honrar a memória daquela única vó que ele conheceu e com quem dividiu parte da infância. Voltou os olhos vertidos de lágrimas para o reflexo no espelho: olhar vazio, dentes amarelos de cigarro, barba falha pelo barbeador descarregado. Ele só não sabia quando conseguiria juntar novamente aqueles destroços de alma estirados no rastro de destruição que era aquele castelo de cartas desmoronado. Sonhos, vontades e desejos dividindo espaço com culpas, desrespeito e desamor para com ele mesmo. Castelo de cartas, com a solidez de sua estrutura viciada pela fraqueza de uma alma contaminada: ainda preferia se destruir a lutar por si mesmo.
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