Da sacada do apartamento eu enxergava ao longe alguns dos raios de sol que escapavam por entre os prédios vizinhos. Estava assim por dentro também: era tanta sombra que, pouco a pouco, a claridade já não se fazia presente e eu me encontrava em completa escuridão. A rede de proteção impedia que eu me prostrasse além dos limites da grade padrão daquele residencial histórico onde morava, e assim eu fazia do quarto-sala-cozinha-banheiro espaço suficiente pra levar uma vida que havia tempos não fazia sentido algum. Peguei a tesoura sem ponta, ainda dos tempos de colégio, e comecei a dar fim às finas linhas que se juntavam em nós e limitavam meu alcance.
- Sabe voar por acaso?
Era ela, a vizinha do lado. Tinha esquecido de trocar a fechadura da porta depois que ela se negou a devolver a chave emprestada para aguar meu pé de manjericão quando nas minhas últimas férias. Agora, dia sim dias não, lá estava ela quando eu menos esperava fazendo perguntas que eu não sabia – ou não queria – responder, me convencendo a alterar o visual escolhido do dia ou simplesmente levando um pedaço do bolo de chocolate que a mãe dela deixava semanalmente na portaria do prédio. Chata.
- O que uma coisa tem a ver com a outra? – perguntei com a tesoura em riste depois de pôr fim a quase metade da rede de proteção. Ela não respondeu. Deu um sorriso, pôs o jarro com um pé de manjericão descuidado no chão e sentou-se no banco onde antes ele estava, depois de usar as costas da mão para limpar os resíduos de estrume. Olhou-me nos olhos, deu de ombros e continuou a sorrir de olhos fechados, como que fazendo daquele seu momento de meditação. Ignorei e voltei ao trabalho interrompido.
- Eu sei voar. Quer aprender? – ela disse ainda de olhos fechados, eu percebi quando deixei a tesoura de lado e voltei a atenção a ela, deixando escapar um riso desconfiado. Ela não só era chata, era louca também. Expulsá-la não seria possível, eu já testara outras vezes. Joguei a tesoura no chão, abri os braços e pedi que me ensinasse a voar tão alto que eu pudesse alcançar a montanha mais alta que existisse no mundo. Ela riu, abriu os olhos e me convidou a conhecer o seu apartamento do outro lado do corredor, ignorando completamente meus braços abertos – Aqui não tem espaço, você ainda perde muito tempo guardando lembranças que não te deixam abrir as asas – disse enquanto virava as costas e me fazia seguí-la.
Foi a primeira de tantas outras vezes em que estive naquele apartamento do outro lado do corredor. Ela quase não tirava férias, mas deu-me uma chave para eu treinar minhas habilidades aéreas sempre que quisesse. E quase todos os dias lá estava eu, fazendo perguntas que ela sempre sabia responder – mesmo quando não queria, inspirando-me no seu sentir bem consigo mesma sem alheios para incomodar, levando barras de chocolate e doces casadinhos do bistrô da esquina que eu descobri ser o seu preferido. E eu amava aquela sacada dela, sem rede, sem plantas, livre – pra voar eu só preciso do vento, dizia ela.
Um dia voltamos no tempo: tantos meses sendo eu o intruso do seu quarto-sala-cozinha-banheiro, acabei me assustando quando abri a porta do meu apartamento e dei de cara com aquela vizinha da porta da frente sentada no meu sofá, lágrimas que saíam dos olhos e encerravam a viagem nos lábios sorridentes: contou-me seus planos secretos, falou do quanto sonhava com aquela partida e chorou uma saudade que até hoje se faz presente quando me vejo cheio de respostas, duvido do sucesso de um visual ou sinto desejo daquele bolo de chocolate que só a mãe dela sabia fazer. Um dia voltamos no tempo para que ela pudesse se despedir do jeito atrevido que chegara anos antes: invadindo meu espaço cuja chave eu mesmo lhe presenteara.
Fui à sacada do meu apartamento e sentei naquele mesmo banco em que ela sentara tantos anos antes. Estava ainda no mesmo lugar, um jarro sem vida ao seu lado, abandonados pelo tempo em que perdi a vontade de voar desde que ela se fora. Eu não conseguia voar sozinho, afinal. A rede de proteção ainda pela metade, uma sacada que nunca me fora vista como pista pro impulso de se fazer plano no ar. Procurei aquela tesoura sem ponta, enferrujada pelo meu próprio descuido, carente de forças para o corte num único movimento. Impaciência. Forcei as lâminas o tanto que pude até não existir resquícios de linhas ou nós entre mim e as sombras daqueles edifícios que desviavam a luz do sol.
Coloquei os pés no espaço entre o rodapé e a grade, preso pela cintura, impulsionei o tronco à frente, posição corporal de quase noventa graus enxergando o chão sete andares abaixo. O voo desejado anos antes se convertera numa intensa vontade de cair. Era mais fácil que persistir na minha latente falta de habilidade em abrir os braços e planar ao vento.
- Sabe voar, por acaso?
Era a voz dela, da vizinha do lado. Tinha três anos de sua partida e eu nunca lembrara de trocar a fechadura da porta.
- O que uma coisa tem a ver com a outra? – perguntei enquanto desfazia aqueles noventa graus, sorrindo e voltando o corpo ao seu encontro, desesperado por um abraço. Ninguém. Era eu agora o louco, ouvindo vozes num apartamento cheio de lembranças que me impediam de voar. Em cima do banco uma pena negra. Lembrei dos planos secretos, confidenciados tantos anos antes. Era ela sim. Me fazendo perguntas que eu não sabia – ou queria – responder. E deixando uma de suas penas negras como resposta das minhas perguntas que ela sempre sabia responder. Eu podia voar, podia sim. Só precisava deixar de lado aquele medo de, entre um voo e outro, perder um pouco de minhas próprias penas.
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