Wednesday, December 31, 2014

Doce Dezembro

Janeiro foi o dia da formatura: quando se é tomado pela sensação de dever cumprido, não interessa o motivo. Não interessa se algo grande ou pequeno foi feito, se foi fácil ou difícil. A única coisa que importa, pelo menos naquele dia, é ser feliz por saber-se capaz, independentemente do desejo em aprimorar aquela capacidade ou não. Janeiro foi dia de formatura porque, além dessa sensação, é muito bom saber-se motivo do sorriso de outrem, é muito bom saber-se objeto do orgulho de alguém.

Fevereiro foi o dia do pior aniversário: você recebeu mais telefonemas por minuto do que qualquer outro dia, mas aquela ligação não estava entre eles. E no seu próprio dia você fica refém de um carinho ou afago do outro, porque não consegue enxergar que tem muito mais carinho e afago merecido por perto. Você olha no espelho e diz para si mesmo que aquele é um dos piores dias da sua vida, mas sorri amarelo porque tem gente que vai te visitar e é tão especial que você não quer se dizer triste quando deveria estar mais feliz.

Março foi a véspera do vestibular. Mesmo sabendo que a prova vai ser fácil, que não tem concorrência e que seu nome tem noventa e nove por cento de chance de aparecer na lista de aprovados, a insônia toma conta porque o dia seguinte define sua vida. E quando essa definição também pressupõe a realização de um sonho, o pânico toma conta e, mesmo com a prova fácil, a falta de concorrência e a certeza de ver o nome na lista de aprovados, o branco é inevitável e, ás vezes por uma questão, toda aquela sabedoria vai por água abaixo.

Porque Abril foi realmente o dia do vestibular. Insônia que faz chegar com duas horas de antecedência no local de prova. Sacola com chocolates, biscoito e uma variedade infinita de guloseimas que ficarão intactas até serem jogadas no lixo ao término da prova. Porque mesmo com a certeza de algumas questões marcadas, não existe fome ou vontade de se alimentar até que a sensação de alívio por um gabarito semelhante ao seu seja liberado oficialmente. E seria impossível comer qualquer coisa ziguezagueando daquele jeito entre felicidade e tristeza enquanto compara-se sua prova com de outros colegas. Abril foi como um dos dias em que o humor mais oscila e confunde os pensamentos na hora de dormir.

Então Maio foi como uma estreia no cinema: você sabe que aquele pode ser o dia mais lotado de todos, mas o trailer foi tão encantador que nem seu recente pânico de ir a locais impossíveis de circular é capaz de impedir a ida na primeira apresentação. Trailers enganam, então chances iguais de encantar-se mais ainda ou decepcionar-se com o que será passado na tela. Maio foi como o dia em que você sai daquela sessão apenas uma semana depois, porque finalmente conseguiu encerrar a lista de ensinamentos que aquelas duas horas conseguiram passar.

Junho foi domingo de jogo, quando o Brasil precisa fazer um gol porque empatar no zero a zero não é empate, é derrota. E o seu patriotismo te faz torcer até o último segundo, acreditando piamente que um segundo é tempo suficiente para a bola cruzar todo o campo e ser marcado um gol. E mesmo quando isso não acontece, não se perde a esperança que foi apenas um dia ruim, mas num próximo jogo a vitória é inevitável. Junho foi aquela esperança que nasce do sorriso em que as lágrimas de derrota selam seu destino final.

Julho foi primeiro dia de aula. Não interessa o quanto se deseja ou não criar novos laços, serão eles criados independentemente de vontade. Foi como descobrir um novo melhor amigo, que só se saberá assim anos depois, ao tentar lembrar de quando se conheceram. Até se pensou que seria um dia horrível, mas o parquinho da escola era a coisa mais legal que já se tinha visto na vida e só aquilo ali já fazia valer a pena ir todos os dias para a aula. E era tão incrível, que fim de semana ainda não era o desejo de toda segunda-feira ao fim de tarde.

Agosto foi frio na barriga. Pode ser o dia da primeira viagem de avião, ou quando entrou no mar pela primeira vez. Pode ser o dia em que a roda gigante do parque deu problema e você era quem estava no assento mais alto. Pode ser o pulo de asa delta ou a desistência dele em cima da hora. Agosto teve desgosto, mas foi um mês de mais gosto. Como comer a torta naquela confeitaria que abriu recentemente e só saber do preço na hora de pagar a conta: ok, pode parecer que não há humildade no valor cobrado, mas essa delícia toda deu trabalho e eu não só paguei, como já combinei o retorno.

Setembro sempre teve cara de primavera, mas foi como o dia mais frio do ano. E, não bastasse ser o dia mais frio, ainda tinha a obrigação de acordar cedo para o trabalho. O assento do vaso estava gelado, o chuveiro não esquentava e a renovada recente no guarda-roupa não previa temperaturas baixas tão precocemente. Mas Setembro também se fez o dia em que o outro lado da cama não estava vazio. Setembro se fez sexta-feira e, mesmo com todas as dificuldades, aquele dia mais frio do ano virou a noite mais quente que poderia acalmar um coração.

Outubro foi Natal, especificamente aquele primeiro Natal em que o Papai Noel não deixa um presente embaixo da cama. E ainda que se soubesse que aquele carro na garagem de casa era a verdadeira carruagem e que o saco vermelho tinha etiqueta de loja e não escondia milhares de presentes, era difícil lidar com aquela primeira vez em que abrir os olhos e olhar embaixo da cama não os faria brilhar como nos natais anteriores. Outubro foi um daqueles dias cruciais em que se percebe aumentar a distância entre a infância e o temido mundo real.

Daí veio o dia de pegar o resultado dos exames no laboratório. Aquele dia em que até as sensações mais comuns se tornam sintomas de um resultado positivo. Porque Novembro não foi como o dia de pegar exames de rotina, e saber-se livre do risco de qualquer endemia. Novembro foi como aquele dia em que o resultado dentro do envelope pode realmente dividir uma vida entre o antes e o depois de tornar-se refém do cárcere mental capaz de consumir alguém por inteiro. Novembro foi aquela primeira vez em que o resultado de um exame foi entregue pela psicóloga do laboratório e não pela secretária. Foi o dia em que se dormiu querendo acreditar numa análise equivocava, mas dando para si mesmo uma precoce data de partida.

E quando parecia que a única coisa a se comparar com o último mês do ano seria o dia de uma partida precoce, Dezembro chegou tão cheio de doçura que um dia é muito pouco para se comparar com o tanto de experiências vivenciadas no decorrer dos seus trinta e um dias. Dezembro foi o nascimento de um filho. Foi a semana de receber as notas das últimas provas e descobrir que não ia para recuperação. Foi o dia de se despedir do amigo que estava de férias, já com saudade dos últimos dias que passaram juntos. Foram todas as vezes que jogar bola na varanda quebrou a janela de casa: os sermões podiam doer, mas nunca eram motivo para evitar arriscar-se novamente. Dezembro foi o dia que se descobriu que perdoar o outro faz bem, mas perdoar a si mesmo ainda não teve intensidade fielmente definida. Não só foi o último mês com foi também o último dia do ano: a véspera do novo, quando se enxerga esperança nos próximos doze meses. E por mais que eu lamente as lições que deixei passar sem nada aprender, Dezembro foi o sopro na brasa que minha esperança precisava para reacender essa vontade toda de ser feliz que eu termino o ano agradecendo por sentir.

Tuesday, December 23, 2014

dois sóis


Eu sempre fui bastante cético, mas não quando se falava de amor. Eu sempre acreditei no amor, sempre vi amor onde só viam ódio. Sempre acreditei que o ódio é só falta de amor: e se alguém não tem amor pra dar, o tem para receber, porque amor a gente recebe de graça. Mas eu sou humano e, nos últimos meses, a Terra não parecia exatamente o planeta onde eu deveria estar. Saí de órbita, cada vez menos refém da gravidade e com os pés mais longe do chão. No meu novo espaço não cabia mais amor. Era demais o que eu tinha para dar e não achava justo acumular o de mais outro alguém. Ou merecido.

Via minha esperança esvair-se cada vez mais, conformando-me com o fato de que ficar sozinho não era necessariamente uma opção. E, mesmo depois de dedicar-me a declarar um amor que até então parecia indeclarável, permanecia inerte, refém do medo de perder o que tinha se transformasse aquelas palavras em gestos, levando-as para o mundo fora do papel. E então lá vinha você, com os olhos por vezes cheios de lágrimas, mas sempre brilhando ao afirmar que nesse universo tão desconhecido, havia alguém para você conhecer. Alguém que ia te fazer sorrir, te fazer feliz, não exatamente do jeito que você talvez quisesse, mas do jeito que você merecesse. E você sempre soube do seu valor, ainda que vez ou outra duvidando dele.

- Os descrentes de amor podem dizer o que quiserem, Luís.
- Eu ando descrente do amor.
- Que descrente do amor, o quê. Você é o cara mais esperançoso que eu conheço. Sai dessa.
- Tá difícil nos dias de hoje.
- Ai, Luís. Sai dessa vibe negativa. Eu ainda sonho. Aliás, sonho não. Eu profetizo, porque vou te dizer que, se tem uma coisa que eu sou convicta, é que tem alguém perambulando por aí vindo direto ao meu encontro.
- E você aí parada, Luena?
- Ah, cara, a viagem as vezes é longa. Todo mundo precisa descansar.
- Sei...
- Você tá sendo um astrônomo.
- Como é?
- É, é isso, Luís. Você está sendo um astrônomo.
- Falou de viajar e tá viajando agora?
- Você tá aí, dizendo que aquele segundo sol é um cometa. Lembra? Cássia Eller e tal?
- É, você tá precisando realinhar as órbitas da sua cabeça mesmo...
- Eu sei, Luís.
- Ainda bem que você sabe.
- Não, não. Eu sei que você ainda acredita. Você só não lembra disso porque é mais fácil brincar de voar que manter os pés no chão. Você ainda acredita. Você só não tá se permitindo sentir isso. Abre o coração, cara. É bom.

Resolvemos, eu e um grupo de amigos, ir passar o fim de semana na praia. Aquela noite havia sido a despedida e eu bebi tanto que apaguei na areia mesmo, enquanto admirava as estrelas no céu. Pelo menos essa é a última coisa de que me lembro antes de abrir os olhos, já ao amanhecer, e ser tomado de uma sensação inebriante cujo primeiro pensamento me levou até você. Ainda que eu desse valor inestimável para qualquer coisa que você dissesse, um segundo sol seria surpresa mesmo depois daquela nossa conversa. Então eu vi. Vi com meus próprios olhos, testemunhas únicas daquele fenômeno espetacular que fazia a vida arder de tanta vontade que dava de viver só para ser também o segundo sol de alguém.

E eu lembrei de você. Porque você me pediu simplesmente que abrisse o coração. Naquele espaço de tempo, entre o momento em que eu achei ter visto um cometa e o momento em que eu vi dois sóis realinhando as órbitas já há tanto tempo desalinhadas aqui dentro, foram seus olhos brilhando, sua firmeza na fala e sua crença na felicidade que me vieram na memória. Você me fez transformar um cometa no segundo sol que me deu o amanhecer mais lindo do ano inteiro. E aqueles dois sóis fizeram daquele amanhecer a primeira vez, em muito tempo, que manter os pés no chão era muito mais incrível que voar.

Eu estou feliz. Estou feliz porque sempre acreditei que o motivo de minha existência era fazer o outro sorrir. E o que eu sentia quando aquele sorriso se concretizava era o que de mais puro eu podia oferecer a outrem. Estou feliz porque aqueles dois sóis me fizeram lembrar disso e assim permaneço firme na crença do motivo de minha existência. Mas estou mais feliz ainda porque descobri que existe sentimento ainda mais puro que aquele sentido ao fazer o outro sorrir: sorrir pelo sorriso do outro. Seria paz? Isso é o mais próximo que eu posso chegar para explicar a inexplicável sensação que tomou conta de mim aquele dia.

Saturday, October 25, 2014

sem volta

Te vi chegar, partir, voltar
Foram tantas vezes que nem sei contar
Te vi querer, se arrepender e me deixar
Banda Lolla 

Eu lembro da primeira vez que te vi: segundo dia de aula, aluna nova, filha de militar. Os cabelos presos num rabo de cavalo, saia rodada, camiseta e havaianas nos pés. Até agora há pouco eu acreditava que o fato de a única cadeira vaga da sala estar ao meu lado era obra do destino que nos reservava um futuro juntos. Ainda que você tenha dito, tão logo sentou, que não queria criar laços para desamarrá-los seis meses depois. Eu não gosto de ser desafiado, mas agora acredito que deveria ter respeitado sua vontade naquele momento. Afinal, se era o destino, porque levou um mês até que eu conseguisse, mesmo contra a sua vontade, quebrar a regra imposta naquele nosso primeiro encontro? E não foi muito honesto de minha parte pedir, na surdina, que o professor escolhesse você como meu par naquele trabalho. Sabe o que eu lembro também? De como você sorriu quando eu te contei essa história a primeira vez. Estávamos no aeroporto. Era a primeira vez que você partia da minha vida. Haviam passados seis meses e você chorava, culpando-se por ter se deixado envolver. Eu arrisquei sofrer a consequência de ter tua mágoa, mas a insistência fora minha e tudo o que eu menos queria era ouvir aquela palavra saindo da sua boca. Seria desonesto de minha parte te deixar com culpa. Mas você sorriu. Aquele sorriso mais feliz. Você acreditava em destino também, lembra?

Foi a primeira vez que você partiu e também a com menor duração até você voltar. Mas, pensando bem, o fato de você ter me alcançado ainda no estacionamento do aeroporto não deve ter sido teu retorno mais exaustivo como eu pensava na época. Até porque, naquela época, eu não imaginei que fossem haver outras partidas. Mas houveram. E quando você se esforçava para permanecer, cedendo o seu lado, eu te mandava ir. Eu não precisava me preocupar com desonestidade, porque sabia que você voltaria. Com exceção de duas únicas vezes. Uma na primeira vez que eu usei da minha força para te fazer sentir inferior a mim. Mas você voltou: o retiro espiritual onde você esteve por um mês – ou casa de amiga, ou de alguém da família, afinal eu nunca consegui te encontrar – ajudou para que eu recebesse o seu perdão. Era isso: você só precisava de um tempo. Tiveram vezes que no dia seguinte você estava de volta. Depois me acostumei a esperar duas semanas e, em seguida, aquele um mês de retiro – ou o que quer que tenha sido – virou apenas mais um mês que você havia demorado para voltar. Mas o querer deu lugar ao arrependimento pela tentativa, até que você não tentasse mais. E hoje faz justamente três anos e dois meses da sua última partida. 

Desrespeitei as normas morais e criei um perfil falso para poder acessar o seu no Facebook, já que você me bloqueara três anos e dois meses antes. Eu não precisava mais ter dúvidas quanto ao seu retorno: você não voltaria. Sua última publicação eram as fotos da última viagem com quem sua página anunciava como seu marido. Sorte do outro que pôde ser pra ti o que eu não fui. Ou, melhor, não ser o que eu fui. Eu queria ser esse cara, é verdade. Queria ter sido eu a te dar a mão e pular as sete ondas no ano novo, queria ser tua companhia para andar com os pés descalços na areia. E para ouvir o silêncio do teu sorriso ao sentir a água morna daquele mar azul ao amanhecer. Eu queria ser o dono daqueles pés ao lado dos teus no início do vídeo em que vocês se balançam na rede enquanto dividem uma água de coco. Foi quando eu vi que teu sorriso é diferente com ele, sabe? E dói. Agora dói, na verdade. Porque eu achei que, mesmo segurando a mão de outro, ainda era eu o teu par. Mas ouvir tua voz naquela gravação me fez lembrar da última vez que eu a tinha ouvido, a mesma da sua última partida, dessa vez sem retorno. Já não era eu com quem você andaria na contramão. Eu, na realidade, não mereço sua companhia sequer no banco do passageiro. Fui eu quem te fez perder aquele sorriso. Ele não estava diferente, apenas tinha voltado a ser mais feliz.

Wednesday, October 22, 2014

jarro azul


Era sempre assim: por mínima que fosse a duração da viagem – e independentemente de quão diferente fossem os ares respirados – ele não via a hora de voltar para casa. Por vezes sonhava com sua cama, o verdadeiro berço de ouro que todos deveriam valorizar. Sentia saudade da rotina também, mas só um pouco. No seu íntimo uma necessidade quase inconfessável, extravasada pelas mãos trêmulas ao abrir a porta do apartamento e na pressa dos passos até a mesa da sala, onde repousava aquele jarro azul que ele tomava nos braços para dar fim à saudade que se apoderava dele sempre que estava distante.

Não era só um jarro, como alguns dos poucos que sabiam sobre aquela relação platônica costumeiramente o denominava. Era uma história. Do passado, claro. Sofrida, de certa forma. Triste, em algumas lembranças. Mas revigorante, pois não o deixava perder a esperança. E era isso que aquele jarro azul lhe proporcionava: esperança. De que um dia não fosse aquele jarro a usufruir de todo o seu cuidado. Tantos anos e nenhum arranhão. Um dia ainda seria ele mesmo o jarro azul de alguém. Enquanto isso não acontecia ele fazia, do seu, merecedor daquilo que, na realidade, era ele próprio quem merecia. Era sempre assim.

Era.

Já haviam alguns anos que ele não encontrava ela. A distância já não era medida apenas pelos quatro metros que separavam as portas dos seus quartos. Ele se mantivera no presente, ela retornara ao passado em busca do futuro. Ele estava preso à Janeiro. Ela brincava de ir e voltar nos meses, presa ao medo de experimentar ganhar coisas novas em um novo ano. Visitá-la era aventurar-se no desconhecido para encontrar o passado. Recebê-lo era encontrar o passado, mas encarar o presente como tantas vezes ele tentava convencê-la a fazer. Mas agora o rio era dela. E era branco, não mais azul como o mar do outro.

Naquelas duas semanas, talvez pela primeira vez, ele não sofreu de saudade daquele jarro. Manteve a lembrança na memória, compartilhou histórias onde era ele o tema central, sentiu saudade de quando se apaixonou por ele. Mas a falta dele não era motivo de sofrimento. Na despedida, ao invés de aconselharem-se a abdicarem, ambos, daquilo que os fazia mal, ele prometeu que voltaria o mais breve possível. Ela prometeu que aquele ano chegaria ao fim depois de tanto tempo.

Foi a primeira vez em quase vinte anos que ele não fez a visita à sala antes de ir para o quarto. Era sempre assim: abria a porta do apartamento com as mãos trêmulas e seguia apressado até a mesa da sala. Era. Naquele tardar da noite, seus movimentos acompanharam a duração do assobio que representava a melodia da versão estendida de Ney Matogrosso para uma música que falava de saudade. Abriu a porta calmamente, seguiu pelo corredor até o quarto e deitou na cama, fechando os olhos em seguida. Ao fim da melodia, deu-se conta de que não fora até a mesa da sala. Mas adormeceu antes que pudesse levantar novamente.

Acordou bem cedo e, antes de ir para o banho, sintonizou o aparelho de som na rádio de onde originaram-se diversas gravações em fitas k7 na época em que apenas quatro metros era a distância diária mais comum entre eles. Percebeu que o cardápio musical divergia muito do que eles ouviam anos antes, mas as melodias e composições continuavam de muito bom gosto. Deixou a porta do quarto aberta para dar trilha sonora àquele encontro na sala ao fim do corredor. Foi até a mesa, pegou o jarro azul e manteve-o rente ao corpo num último abraço antes de deixa-lo no cubículo onde os moradores colocavam aquilo que queriam se desfazer para que não tivesse apenas o lixo como destino.

Talvez seu lugar não fosse naquela mesa mesmo, mas essa ainda era uma decisão incerta. Abriu o armário que sustentava a televisão e ficou por um tempo sem piscar os olhos, apenas fitando aquele objeto que ocupava todo o espaço por detrás das portas. Era idêntico ao que acabara de se desfazer, mas de azul só tinha os espaços vãos que a tinta branca mal passada deixara anos antes. Gostava daquele jarro, mas, preso ao passado, preferiu comprar um igual a fazer daquela cor branca um brinde à mudança. Os anos trataram de encardi-lo, mas isso o tornava ainda mais belo. Era o jarro dele. Estava diferente. Mas estava melhor. Aquela réplica de um passado que não deu certo era certamente a ingenuidade de um coração a persistir no erro.

Decidiu que seu lugar seria sempre uma decisão incerta. Ele não precisava ficar apenas sobre a mesa. Por enquanto permaneceria ali, adornando o ambiente e fazendo-o lembrar que, mesmo depois de tanto tempo no escuro, ainda era um belo jarro. E a esperança que o outro lhe transmitia fora substituída pela paz que encarar a mudança lhe dava. E lembrou dela. Ia quebrar a promessa que fizera na despedida. Parcialmente, pelo menos. Cerca de três semanas depois, e após muitas histórias estranhas inventadas, ela finalmente soube que o motivo para ele querer seus documentos não era para tê-la como fiadora em outro aluguel. E dali pouco mais de quarenta e oito horas estavam sentados à beira da praia, no primeiro dia do novo ano que começaram juntos. Ele era o jarro dela. E ela era o jarro dele. Nem azuis, bem brancos. Apenas abriram as portas um pro outro, ainda que não soubessem disso conscientemente, finalmente enxergando enxergando que não precisavam de ninguém, além de si mesmos, para se sentirem seguros.

Monday, October 13, 2014

adolescente

dos escritos no passado: 2003.

Porque ela não me vê? Por trás destes óculos há um sujeito honesto. Estas espinhas dizem apenas que sou jovem. Algumas vezes elas praticamente explodem no meu rosto, mas isso é só uma fase. Meus óculos, algumas vezes sujos, demonstram um pouco do meu relaxamento quanto à beleza.

Não sou bonito, eu sei. Fossem apenas os óculos e as espinhas ainda estaria melhor. Pra completar ainda estou acima do peso, com uma barriguinha aparente sob a camisa. Mas isso não me impede de olhar e admirá-la cada vez mais. Passo despercebido sobre seus olhos, mas ainda tento dizer-lhe um oi que nunca tem resposta.

Todos os dias eu já acordo disposto a ir à aula apenas para vê-la. Sentada ali, no canto à esquerda, junto às suas amigas. Presto mais atenção nas atitudes dela do que nas do professor em frente à sala. Ela percebe todos os outros ao redor, com exceção deste insignificante colega de sala.

Um dia ela me viu. Estava na fila do lanche e ela pediu que eu comprasse seu lanche. Comprei e ela se despediu apenas dizendo to te devendo essa. Depois desse dia nunca mais nos falamos. Eu ainda a vejo na sala e continuo imperceptível ao seu olhar. Mas ela ainda continua me devendo aquela e talvez seja a hora de eu a cobrar.

Thursday, October 09, 2014

germinou



dos escritos no passado: 2009.

Lá estava você nove meses depois.
Talvez não tenha sido o primeiro a lhe ver, nem a te segurar, mas sentiu a emoção que só ele poderia sentir.
Talvez não tenha sido o primeiro, o segundo, o terceiro, mas o quarto, como eu, o que não significa que tenha sido menos importante.
Talvez não tenha sido o melhor, não tenha te carregado nos braços, não tenha te levado para correr no parque, mas sentia um êxtase de orgulho cada vez que via você sorrir.
Talvez não te tenha deixado sair, não tenha comprado aquela roupa ou aquele brinquedo que tanto queria, mas, tenha certeza, você é a pessoa que é hoje também pelas coisas que não teve.
Talvez ele tenha sido rude algumas vezes, mas pergunte hoje a si mesmo: quantas vezes foi rude com ele também?
E talvez ele não esteja mais ao seu lado, ou esteja de uma forma distante, mas lembre-se: você SEMPRE vai carregar um pedacinho dele com você.
Dê um abraço no seu pai. Faça uma oração. Visite-o onde quer que ele esteja. Aqui ou lá estará sempre olhando pra você.