Sinto que o melhor momento é aquele que não quer passar
E que dura toda a eternidade
E isso é só pra começarO que vale nessa vida, vale como um bom presente
Cai do céu, um bem que a gente sente
Vem como você vem antes de eu me preparar
E me diz: vai ficar aqui, pois aqui é seu lugar
Já era madrugada. Um céu negro, sem lua e sem estrelas,
tinha sua escuridão cortada pelos postes de luzes amareladas que contornavam o
calçadão da beira mar. Estávamos ali em cerca de vinte pessoas. Umas poucas
arriscavam molhar a barra dobrada de suas calças onde a água do mar já
alcançava seus pés. Outras conversavam um longe suficiente para não serem
ouvidas. E nós, você, eu e a maior parte delas mantínhamos nossas mentes
concentradas em acertar os versos seguintes da canção que acompanhava o som do
violão. Entre uma ou outra desafinada ou um equívoco na troca de notas,
seguíamos cantando em coro para desencorajar uma provável desistência. Eu,
particularmente, me preocupava mais com a interrupção de te ver olhando para
mim que do que com o fim da melodia. Pelo visto os olhos me fascinam mais que a
música.
Durante aqueles poucos segundos em que eu conseguia encará-lo também,
minha mente criativa fantasiava que a busca de um era a busca do outro. Mas tão
logo eu era trazido à realidade de que assim não o eram, desviava o olhar como
que pedindo desculpas pela invasão à sua privacidade ao colocá-lo em meio aos
meus pensamentos. É, acredito que culpado seja o termo mais correto para dizer
como me senti diversas vezes naquela madrugada. Mas o que vinha antes – um coração
quase acelerando, a respiração quase interrompida pelo sistema nervoso que
davam uns tremeliques internos no braço e, principalmente, a idealização tão detalhada
e nítida na minha cabeça em tão pouco tempo – conseguia tornar aquela culpa
algo quase inexistente. Eu sabia que era culpa, mas não me sentia atingido por
ela.
Foi assim que eu, já conformado com a realidade latente, resolvi seguir um
caminho há tanto abandonado – mas nunca esquecido – e deixei que você
inconscientemente ditasse as regras. Era preferível segui-las a não ter chance
nem de conhece-las. Era mais ou menos como estávamos ali: o mar era o mesmo,
mas era muito mais aprazível estarmos naquela praia quase deserta que em praia
vizinha rodeada de bares. As vezes não ter o que se quer pode proporcionar
exatamente aquilo que você precisa. E, naquele momento, eu percebi que não
tinha o que queria, mas estava tendo oportunidade de ter algo que me faria tão
bem quanto – quiçá mais. Dias antes havia dito que estava com preguiça de novas
histórias, novos começos. Mas naquela semana fui tomado por um desejo quase incontrolável
de fazer parte de algo novo. Digo quase porque não era bem o que eu queria, mas
por algum motivo pareceu ser exatamente o que eu precisava.
E naquele dia,
sentado na areia, ouvindo em coro alguns versos da minha banda preferida,
coincidentemente a mesma sua, eu consegui perceber. Ali, pouco depois do
nervosismo, dos olhos desviando constrangidos e de sentir um pouco o peso da
realidade, eu consegui enxergar que não era o que eu precisava, mas quem eu
precisava. E eu não ligo se pode parecer uma declaração de amor –
principalmente pelo fato de saber quando realmente o sinto – mas preciso deixar
registrado que você era a pessoa que eu precisava ainda sem saber. E quando
penso sobre sua reação a essas palavras, imagino que eu posso não ter sido a
única pessoa a ficar surpresa com essa constatação. Ou talvez eu tenha ficado
tão desesperadamente contente ao chegar nessa conclusão que não me permiti
controlar os sinais que deixavam isso explícito. Lembro que, por saber que não
nos veríamos por um tempo, fiz o que foi possível para te convencer a ficar até
o último minuto na companhia do barulho das ondas do mar. Era algo importante demais
que estava acontecendo naquela madrugada e eu não podia deixar escorrer de
minhas mãos tão facilmente.
Dias depois, no aniversário da dona da casa onde
você se hospedara, que coincidentemente era minha amiga, nos encontramos de
novo. Era, também, sua despedida. Dentro de algumas horas você estaria num
avião rumo à sua cidade natal, à sua rotina, às suas pessoas, à sua vida. E
naquele dia você me abraçou de um jeito que eu deveria sentir como se as pernas
fossem falhar. Mas o fato de ter compreendido o quão mais importante era o que
podíamos construir de outra forma fizeram com que elas se mantivessem firmes. Talvez
você ainda não tenha entendido. Ou talvez tenha ficado mais confuso. Mas é fato
que quando te entreguei aquele papel cheio de linhas rabiscadas com minha letra
apressada eu, ao mesmo tempo, deixava as portas abertas para você entrar na
minha vida. E – também ao mesmo tempo, mas inconscientemente – era ensinado mais
sobre o amor, as diferentes formas de amar e, principalmente, o amor-próprio do
que há muito não aprendia.
Quando eu queria que o sentimento fosse recíproco,
o que eu realmente precisava era apenas sentir. Sem saber eu havia me desfeito
da liberdade de apenas doar um sentimento para alguém e, assim, acabara
esquecendo do quanto o sentir por si já faz um bem danado e acalenta o coração.
É algo como o que aquela garota da vitrine sentia: preferia não ter e querer
para sempre, do que ter e não querer mais. Não quero eternizar uma esperança
infundada como ela. Mas prefiro o que tenho hoje do que o que não terei amanhã.
Porque, assim como no tempo, o hoje é suficiente. Não à toa se chama presente.
E presentes devem ser adequadamente agradecidos.
Obrigado por aquela madrugada
à beira mar e, mesmo que depois de muita insistência, pelas horas a mais
dedilhando o violão. Obrigado pela disponibilidade em, assim como eu,
permitir-se adentrar o mundo de um novo alguém. Obrigado por, enquanto os
postes iluminavam o calçadão, fazer surgir uma luz aqui dentro a iluminar um
caminho tão puro e bom que há muito se mantinha sob sombras. Obrigado pelo abraço
apertado e pela inspiração inocente – ainda assim eivada de qualquer máscara
para a realidade. Obrigado pela paixão platônica responsável pela compreensão
de todas as outras que eu já tive. E, principalmente, obrigado por ter vindo de
tão longe para ser parte desse algo extraordinário para mim: voltar a acreditar
que posso ter o mundo inteiro, um pouco mais, fazer floresta do deserto e
diamantes de pedaços de vidro – ainda que o seu motivo não tenha sido esse, eu
tenho certa crença nessa história de destino.
Obrigado.