Saturday, May 18, 2013

acontece

Eu não pedi pra nascer, sabe? Não pedi pra vir ao mundo, pra fazer parte da família na qual eu nasci, pra ter de dar conta das responsabilidades que eu tenho hoje. Eu não pedi pra estudar em escola particular, nem pra estudar inglês no cursinho, muito menos pra fazer parte dos filhinhos de papai que tanto me rodearam a vida inteira. Eu não pedi pra ter os melhores brinquedos, nem pra participar das festas mais divertidas dessa casa. Não pedi pra ter vários tios e tias, nem pra lidar com inúmeros primos, muito menos pra ter parentes em uma ou outra cidade. Não pedi pra saber escrever, nem pra fazer amigos, nem pra ser legal. Não pedi pra ser querido, não pedi pra que sentissem minha falta. Que eu me lembre também não pedi pra que lembrassem de mim em hipótese nenhuma. Eu não pedi nada. Mas aconteceu. Eu nasci, eu vim ao mundo, eu faço parte da melhor família que eu poderia ter. Eu tenho as responsabilidades que eu deveria ter. Eu estudei em escola particular, em faculdade particular. Fiz inglês no melhor cursinho que tem na minha cidade. Fui filhinho de papai, e ainda sou, mas não ligo nem um pouco pra isso. Eu tive os melhores brinquedos e participei das melhores festas na minha casa. Tenho vários tios, tias, sobrinhos, primos e etc. E tenho parentes em outras cidades, assim como tantas outras possibilidades. Aprendi a escrever, fiz diversos amigos, e sei que sou legal. Sou querido – modéstia à parte – e sei que sentem minha falta. Sei que lembram de mim diversas vezes. E, ainda assim, eu não pedi nada. A única coisa que eu pedi, e pra mim mesmo, dentro de mim, foi que eu não ficasse sozinho. E Deus atendeu minhas preces. Ele me deu o melhor sem que eu pedisse. E ainda me satisfez sem que eu soubesse que tudo se tratava de algo que eu não tinha como explicar. Mas eu aprendi. Porque nem tudo precisa de explicação. Basta viver, sentir, saber. Eu vivo, sinto e sei: estou no melhor lugar que poderia estar. Eu não pedi nada. Mas ganhei muito mais do que poderia imaginar.

Thursday, May 16, 2013

tricô

Ela me ligou. Contou da vida, o que fazia, pra onde ia, como estava se sentindo. Falou do novo relacionamento, de como ele é legal, amoroso e prestativo. Citou algumas situações familiares engraçadas, daquelas que são ditas seguidas de muitas gargalhadas. Brincou com a quantidade de calorias que eu andava ingerindo nos últimos dias. Aconselhou-me a procurar alguma academia e voltar a praticar exercícios. Disse, também, que ia viajar no feriado. Aliás, pretendia. A situação financeira não estava lá essas coisas, ela desabafou. Disse que lá no trabalho as coisas estavam melhorando, mas o salário ainda estava na expectativa de aumento desde sabe-se lá quando. Perguntou do novo livro que eu estava escrevendo. Reclamou por só saber do livro porque alguém comentara. Se desculpou por não ter ligado no aniversário. Cabeça avoada como sempre, ela confessou. Me desejou sorte, sabe que eu sou capaz. Comentou sobre a briga de um casal de amigos. Confidenciou uns acontecimentos recentes. Confiou em mim para desabafar. Desejou felicitações pelo aniversário do meu afilhado. Mas cansou de ouvir, cansou de falar. Já deu, ela disse. Despediu-se. Mandou beijo e um até logo e desligou. Eu liguei de novo. Esqueci de dizer antes. Eu te amo, não esquece, eu disse. Ela disse que também. Sempre mais.

Thursday, May 02, 2013

já é mais

Sinto falta dos seus olhos, sabe? Sabe, afinal você sempre soube o quanto eu admiro os olhos, o olhar, a forma mais discreta de se insinuar, o jeito mais sensual de se conquistar. E esse sorriso maroto? Aquela gargalhada em alto e bom som que é impossível não reconhecer? Ah, quando você mordia os lábios e me convidava a deitar com você na cama. Lembro da pele, também. Aquele cheiro do hidratante que você sempre passava após o banho. Será que você ainda usa o mesmo? E o perfume? Será que ainda é aquele? Eu tenho um igual. Já quase no fim, mas não termino nunca pra não esquecer o seu cheiro. Essa coisa de que cheiro traz memórias é a mais pura verdade. Lembro de tantas noites em que nossos perfumes se misturavam aos lençóis da cama e como aquela energia consumia nós dois a noite toda. Sabe do que eu sinto falta, também? Dos nossos cafés da manhã. É, aquele mesmo que a gente descia do apartamento pra comprar na padaria e voltar pra cama logo em seguida. E há quanto tempo eu não faço faxina num domingo? Você sala. Eu banheiro. Você quarto. Eu área de serviço. E os dias de criança com as nossas crianças. É, sinto muita falta daquelas tarde divertidas na pracinha. Eu sinto falta de dormir fora de casa pela primeira vez. E de ter tido uma lua de mel de um mês no Rio de Janeiro sem nem ao menos ter casado. Aliás, eu sinto falta mesmo de uma vida de casado. Lembro das festas da sua família, em que eu sempre me senti parte da família. Dos laços eu não sinto falta, porque ainda os tenho, e ai de quem ousar me tirá-los. Eu sinto falta de deixar a loucura me tomar a cabeça e me fazer tomar banho de chuva na estrada. Além de várias outras coisas que a loucura já me fez fazer com você. E a sensatez também, claro. Tenho saudade de pegar a estrada sem rumo, por horas, só para trocar ideias de como foi o dia um do outro. Ah, as surpresas. Sinto falta de te surpreender, sabe? Desculpa, mas é que você é um pouquinho ingênuo sim. Eu sempre consegui te surpreender, vai, assume. Nunca te fiz uma surpresa que não fosse realmente surpresa. E eu sinto falta de estar frente a frente com você nessas horas, só pra ver sua cara de bobo. Que é linda, diga-se. Eu que sempre fui péssimo para receber surpresas, né? Lembro de uma vez que você tentou me fazer surpresa e eu estraguei tudo com essa minha mania de desconfiar de tudo. É, disso eu não sinto saudade. Nem um pingo de saudade de ser tão desconfiado. Mas eu sinto saudade de ouvir aquele toque especial no meu celular, acredita? É, aquele de quando nos conhecemos. A propósito, impossível ouvir a música e não lembrar de você. Uma coisa é inerente a outra. Que tempo bom aquele, né? Eu sinto falta dessa época, quando começamos a nos conhecer. Quando eu soube quem você era sem que você percebesse isso. O quanto eu te conheci e te amei tão rápido. Sinto saudade, sim, de quem fomos. Mas me orgulho muito de quem somos. Porque sentir saudade do que já passou significa que foi bom. Mas ainda estar perto de quem o outro é, é motivo suficiente para acreditar que não só foi bom, como foi um dos momentos mais incríveis e especiais da sua vida.

Wednesday, May 01, 2013

pista de dança

Você olha pra mim com esse jeito meio indecente. Como se me devorasse apenas com o olhar. Não é bem o que passa pela sua cabeça, eu sei. Mas me entorpece o corpo. Minhas mãos gelam enquanto disfarço meu próprio olhar. Não deixo transparecer meu incômodo enquanto você dança sensualmente e me olha com o canto dos olhos. Entrego-me a mais garrafas de cerveja. É quase impossível resistir ao perfume que você exala enquanto se move. Sentado no chão no canto da pista de dança eu vejo você ali no meio, de olhos fechados, mãos para cima da cabeça, envolvendo-se em si mesmo. De repente você aponta pra mim, como se me convidasse a acompanha-lo. Eu hesito em levantar-me, mas como resistir ao encanto dessa música quando é você quem me chama para dança-la? Mas como posso ser egoísta ao ponto de dividir a atenção com você? Parece que só há nós dois, mas é como se o universo interagisse para que apenas você estivesse ali. Assim como você, a luz dança pelo ambiente. E é como se o movimento de ambos se completasse. Na hora certa ela ilumina seus olhos fechados, em seguida seu cabelo esvoaçando sutilmente, e logo depois passa por todo o seu corpo, conforme você se movimenta. Mas você insiste, vai chegando mais próximo, com os braços estendidos, oferecendo as próprias mãos para eu me apoiar. Me olha nos olhos e me faz baixar a cabeça, envergonhado, desacreditado que aquela cena possa ser real. Mas levanto os olhos novamente e lá está você. Como resistir ao encanto desses olhos? Até é possível resistir à dança, aos movimentos, ao chamado. Mas resistir aos olhos é impossível. Enquanto você me olha é como se realmente não existisse ninguém. Até me sentiria invisível, não fosse pelo fato de você estar olhando pra mim. Levo minhas mãos às suas e resolvo aceitar o convite. Você me puxa para o centro da pista e passa a movimentar-se ao meu redor. Abre e fecha os olhos, mas, quando abertos, não os tira de mim. Passa os dedos pela minha face, acariciando meus lábios enquanto morde os seus. Era sempre nessa hora que meus sonhos terminavam. Era exatamente enquanto me fazia desejar sua boca que você se esvaía. Era sempre no momento que eu esperara tanto acontecer que você soltava minhas mãos e, sem despedida, me deixava ali. Mas dessa vez era diferente. Você ainda não tinha ido. E mordia ainda mais os lábios, me convidado a tocá-los com os meus. Dessa vez você não apenas me conquistava com os lábios, mas com os olhos. Seus olhos convidavam para que eu me aproximasse mais. Então agradeci o convite com os meus e os fechei. Por mais que não pudesse mais vê-lo, era impossível não te sentir. Então unimos os corpos. Uma sinergia inexplicável. Um convite ao paraíso. Um desvair-se, dessa vez, de comum acordo. Para outra pista de dança em que as luzes iluminem somente a nós dois.