Nasci da solidão em que se encontrava minha mãe naquele fim de noite fria. Foi meu pai, que nunca soubemos quem foi, que a acalentou naquela noite, junto com tantos outros. Mas foi apenas dele que ela carregou a lembrança. Mesmo sem saber quem. Foi a última vez, como deveria ser. Ela não agüentava mais se entregar. Nasci da falta de pudor que aquela senhora tinha naqueles anos. Senhora, sim, pois era casada, mas se deitava com outros. Meretriz, diziam sem que seu marido se importasse. Ele não podia mesmo ter filhos. Era aleijado, como dava pra se observar. Mas ela cuidava bem dele, meu padrasto, digamos. Nasci da melancolia que invadia aqueles olhos baixos de minha mãe, que sempre quisera tanto ter um filho. Período fértil era a hora de dar por encerradas as desventuras pornográficas do centro da cidade. Era senhora, já. Estava cansada. O marido dela me deu amor, mas eu não retribuí. Sempre fui filho rebelde, afinal nasci da rebeldia que assolou a cabeça daquela mulher que sempre vivera tanto pelo conservadorismo. Nasci da luta dela pra deixar alguma coisa pro mundo. Não plantou árvore nem escreveu livro, mas fez filho. Único. Nasci por querer, sem querer. E sofri a dor de ser um bastardo para sempre nas bocas e ouvidos dos que nos cercavam. Nasci já predestinado a carregar a culpa de uma mulher que queria mesmo era transferir sua culpa pela vida para alguém que pudesse agüentar o que ela não agüentava mais. Nasci culpado, por fim, sem nem saber o que era culpa. E continuo sem saber, tanto que talvez não agüente mais.