Não se faz necessário contar minuciosamente como estava aquele dia. Não é importante para a história. Mas, tendo em vista os acontecimentos, é importante que se tenha uma idéia. Era sexta-feira, talvez uma como outra qualquer. O céu escureceu mais cedo, nuvens cinzentas, um sereno bastante sutil se comparado aos temporais que vinham acontecendo naquele mês de novembro. Algumas poucas pessoas com guarda-chuvas, outras tantas correndo, aflitas com qualquer gota mais forte que pudesse cair do céu.
O prédio era amarelo, com três andares e janelas gradeadas. Nunca tinha percebido, mas olhando agora parecia um hospital psiquiátrico que não queria parecer um hospital psiquiátrico com aquela placa de bem vindo na porta de entrada. Estava, ainda, dentro do carro. Mãos suando, corpo tremendo, boca seca. Medo. Era exatamente dezessete horas e dezessete minutos. Rezava a lenda que quando se olhasse no relógio e a hora fosse exatamente igual aos minutos, devia-se fazer um pedido. Seja o que Deus quiser.
Saiu do carro. Dirigiu-se à porta de entrada, suspirou profundamente e entrou. Àquela hora só a atendente e uma grávida. Laboratório quase vazio, a novela das cinco na televisão, atendente de cinqüenta e sete anos com aquela cara de poucos amigos, louca para que chegasse a bendita hora de fechar tudo e ir pra casa. Ficou estagnado, sem saber se perguntava ou se dava meia volta. Era uma situação da qual não adiantava fugir. Uma hora ia pegá-lo. Resolveu.
Vim buscar um exame. Qual o seu nome? Vinícius. Vinícius de quê? Lima Barreto, ta aqui o protocolo. Hm, só um minuto. A senhora impaciente para ir pra casa discou um número no telefone e ditou o número escrito no papel que ele tinha entregado. Desligou. Você pode aguardar um momento? O médico quer falar com você. Vinícius sentiu seu sangue gelar por todo o corpo. Por um momento pensou que iria desmaiar, mas conseguiu alcançar uma cadeira e sentar. O médico? pensou. Pro médico querer falar comigo é porque não são boas notícias.
Sua cabeça começou a dar reviravoltas. Começou a castigar-se mentalmente: porquê? Como pude fazer isso comigo? Onde estava com a cabeça? Meu Deus, por favor, me ajuda. Meu Deus, me perdoa por qualquer coisa. Meu Deus, qualquer castigo, menos esse. Como eu fui confiar? E eu? E eu? E eu, onde fico? Olha o que eu fiz comigo. Puta que pariu, que merda. O quê que eu vou fazer agora? Minha vida acabou. Minha vida acabou. Minha vida acab...
Pouco mais de cinco minutos depois, a atendente com cara de poucos amigos pediu que ele a acompanhasse. Seguiram por um corredor que, em outro momento, talvez não aparentasse aquela morbidez que exalava dele. Sentia frio na espinha, sentia medo, arrependimento. Eram tantos sentimentos misturados que não sabia como lidar com eles. Só sabia que sua vida estava prestes a mudar. E que jamais voltaria a ser o mesmo Vinícius. É aqui, pode entrar.
O consultório era bonito, limpo, organizado. O médico estava sentando por trás de sua mesa, com as mãos entrelaçadas em cima de um envelope que, ele tinha certeza, era o seu exame. Olá Vinícius, tudo bem com você? Não sei, está? Bom, precisamos conversar. Doutor, por favor, antes de qualquer coisa me diga: eu vou morrer? Não, rapaz, sente-se vamos conversar. Se essa conversa é sobre remédios e como atrasar a morte, eu prefiro simplesmente que o senhor me dê esse envelope e me deixe sair daqui. Silêncio.