Não sei a cor dos seus olhos, fechados a maior parte do tempo, enquanto você se contorce suavemente ao som da música do bar. Uma cerveja numa mão, um cigarro na outra. Cabelo desgrenhado, pelo descuido costumeiro de quem raramente se arrisca a sair da rotina trabalho e faculdade durante a semana. Deve ser bicho de História, dizem uns, ou Ciências Sociais, dizem outros, e trabalhar com cultura, pelas vestes desprovidas de qualquer formalidade. Curte MPB, já se percebe. E agora ensaia uns passos de samba, desengonçado e sorridente, quase que sem graça por perceber alguns olhares femininos descarados e provocantes na sua direção. As gostosas sempre se dão melhor no fim da noite. Mas então, quase que sem querer, em meio a todos os sorrisos reluzentes da noite, você se vê observado por um par de olhos num rosto que não demonstra sorriso algum. Estou de lábios cerrados, hipnotizado pela sua desenvoltura meio sem jeito na pista central. Ri pra mim, demonstrando, quem sabe, interesse por quem está mais interessado na cor dos seus olhos do que terminar a noite na cama com você. É do tipo que dá mais valor à poesia que ao próprio poeta, penso eu. E talvez concorde comigo que só os olhos entendem mais de poesia que o próprio corpo que a declama. Eu rio de volta. Uma nascente sem água que desagua no mais absoluto silêncio que a banda deixa imperar no palco nesse momento. Elas vão até você, as gostosas, e eu acredito que, três da manhã, já é hora de seguir o ritmo dos músicos, entornar a saideira, pegar meu rumo sem rumo e partir. Saio do bar a chamar um táxi, batendo no vidro para acordar o motorista que dorme no banco de trás. Você me cutuca as costas e pergunta se não quero uma carona. Carona com desconhecido, onde já se viu. Já tive uma prima quase atacada por um desses psicopatas da noite rio branquense, vai saber. Mas você parece ler meus pensamentos: diz que vai pro mesmo bairro que eu. E você sorri, como se um sorriso fosse capaz de me convencer. Então você me olha nos olhos. Os seus castanhos, agora consigo ver. Poderia até errar dessa vez, mas nunca me enganara com o olhar de ninguém. Não é qualquer coisa que se extrai dos olhos de alguém, é poesia. E eu sempre acredito na poesia. Sigo no seu encalço, em silêncio, com as mãos no bolso, até seu carro. Você se desculpa pela simplicidade do automóvel. Usado, vinte e um anos de atividade, um ano mais velho que você, um estudante de Publicidade e estagiário em jornal independente. Dividimos um cigarro até me deixar no portão de casa, afinal foi carona assim oferecida. Até duvidaria do desprendimento de telefone celular, não fosse pela agenda abarrotada de papéis presos com clipes e grampos e cheia de anotações. Um último sorriso, quase gargalhado, ao dizer que não gosta de redes sociais.
- Alfredo.
- David – com d mudo.
1 comment:
Continue acreditando sempre na poesia. Tão lindo teu texto...
uma noite dessas... duas pessoas... olhos com cor enigmática, depois castanhos...
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