Tuesday, March 12, 2013

Eu tive um cachorro



Eu tive um cachorro. Eu tinha lá pelos meus  dez, onze anos. A cadela de uma vizinha tinha tido alguns filhotes e ela perguntou se eu não queria um. Com o aval dos meus pais escolhi aquele filhotinho marrom. Não era bem um marrom. Era mais claro. Não sei bem definir a cor específica que ele era. Mas lá foi aquele cachorrinho parar na varanda da minha casa. Era tão bonitinho. Aquele latido fino quando começou a rosnar como se pudesse amedrontar quem se aproximasse.

Minha irmã, que, à época, morava comigo, não era muito fã de cachorros. Ela tinha – tem – essa coisa com bichos de estimação. Meus pais já haviam tido um cachorro, dos grandes inclusive, mas até aquele pequenininho lhe causava um pouco de medo. Mas, conforme ele foi crescendo, até ela se acostumou com ele. Não o queria por perto, roçando suas pernas ou simplesmente clamando por carinho, mas também não se incomodava com sua presença em casa.

O Tobby cresceu. E eu também. E eu passei a não querer responsabilidades. Então ele se virava sozinho. Aprendeu a viver nas ruas. Estava sempre pela praça próximo à minha casa, com os outros cachorros da vizinhança. Quando eu saía de manhã pra ir pra aula lá estava ele, estirado na calçada, aproveitando aquele sol das sete da manhã para deixar seus pêlos mais brilhantes, que agora tinham uma aparência cobre e, conforme ele se movimentava, via-se estampado ali um brilho que raramente eu havia visto em um cachorro.

Minha tia o chamava  de “o cachorro elegante”. Se referia ao andar dele, todo pomposo, sem abaixar a cabeça e com um reboladinho que era só dele. Mas eu só brincava com o Tobby. Talvez pelo fato de eu estar seguro que ele realmente era independente e sabia se virar quando eu não estivesse por perto. Mas o fato é que a moça que trabalhava na minha casa, Dona Francisca, é que cuidava dele enquanto eu não estava ali.

Na verdade o que me faltava era responsabilidade. Era muito fácil eu querer um cachorro. Tinha dez, onze anos, e não imaginava que ter um cachorro dava trabalho. Ter um cachorro, pra mim, era uma questão de diversão. E, mesmo eu não estando presente na maior parte do tempo, sempre que eu aparecia ele corria pra cima de mim. Pulava nas minhas pernas, mordia sutilmente, latia de felicidade. Hoje eu recordo que, muitas vezes, em momentos assim, eu acabava simplesmente pedindo que ele saísse. E, ainda assim, ele repetia as mesmas coisas todos os dias.

Até que, em decorrência de seus passeios na rua e da minha falta de cuidado, ele se encheu de carrapatos. Era 2002 e eu tinha acabado de completar quatorze anos. Estava no último ano do meu primeiro grau. Tobby estava chegando ao seu quarto aniversário. Meu pai resolveu dar um jeito nos carrapatos e passou veneno por todo o corpo dele. O único porém foi que aquele veneno para os carrapatos deveria ser utilizado em bovinos. E meu pai havia despejado por todo o corpo do meu cachorro.

Percebendo-se molhado, Tobby começou a se lamber. Achava que era água, talvez, e queria se enxugar. Fui informado, então, que ele não queria mais comer nada, que estava muito debilitado e deveria ser levado ao veterinário. Não lembro bem, mas acho que minha mãe o levou. Ele dormiu lá nesse dia. Então no dia seguinte estávamos com ele em casa, ainda debilitado, mas o doutor havia receitado um remédio para lhe dar de tantas em tantas horas via oral. Naquele momento, ali, no auge do meu desespero, eu percebi que não queria perde-lo. Que o fato de não cuidar não era simplesmente não gostar. Era só que eu não era responsável.

No dia seguinte, quando voltei da aula, Tobby não estava em casa. Meu pai me disse que minha mãe o levara no veterinário novamente porque ele não tinha ficado muito bem. Fiquei tranquilo, pois tinha dado o remédio igual o doutor havia falado. Então almocei e fui para o meu quarto ver um pouco de televisão antes que ele chegasse. Mas ele não chegou. Minha mãe voltou pra casa sem o meu cachorro. Tobby morreu. Lá, na mesa da clínica, sem que eu pudesse me despedir ou simplesmente enterrá-lo em algum lugar.

Meu cachorro simplesmente foi largado para que o veterinário desse um destino para ele. Ninguém perguntou o que eu queria fazer com ele. Ninguém me deu uma chance de, pelo menos, abraçar meu cachorro uma última vez. Eu, que nunca tinha cuidado dele, estava ali, agora, arrependido de todo o tempo que o deixei de lado, como se ele fosse simplesmente um brinquedo meu, que eu podia pegar e largar a hora que quisesse.

Meu pai se culpou por muito tempo. Até arranjou um novo cachorro, mas eu decidi não ter mais animais de estimação até que garantisse a mim mesmo que eu poderia cuidar dele. Minha irmã, aquela que não gosta de animais de estimação, pela primeira vez disse pra mim que o Tobby era o único cachorro que ela gostava. O grande lance é que não havia ninguém em casa que não gostasse dele. Ele era respeitador, era nosso guarda, era quem, sendo cuidado ou não, estava ali do nosso lado no momento que fosse.

Por quatro anos eu tive um companheiro. Que seria inseparável se eu não o tivesse separado tanto de mim. Espero que ele tenha levado lembranças boas de mim. A D. Francisca com certeza ficou na sua memória. Era como uma mãe pra ele. Eu talvez tenha ficado como o irmão mais velho, que não dá muita atenção, mas sabemos que é seu jeito de amar. Eu não tive mais nenhum cachorro desde então, mesmo querendo muito. Porque já prometi a mim mesmo que só darei amor a outro bicho de estimação quando tiver plena capacidade que estou disposto a assumir a responsabilidade. Saint-Exupéry, sabiamente, já nos ensinou: tu és responsável por aquilo que cativas.

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